Faleceu, no passado dia 18 de Setembro, aos 98 anos, o tomarense José-Augusto França. Historiador, sociólogo, crítico de arte, a José-Augusto França se deve a doação de parte do seu espólio a Tomar, o que permitiu a criação do Núcleo de Arte Contemporânea.
O historiador, sociólogo e escritor José-Augusto França, que morreu no passado sábado, dia 18, aos 98 anos, referência maior da cultura e da História da Arte portuguesa dos séculos XIX-XX, deixa uma vasta obra, que atravessa todos os géneros, do ensaio à ficção.
Historiador, sociólogo e crítico de arte, José-Augusto Rodrigues França nasceu em Tomar, em 16 de Novembro de 1922, e destacou-se também com uma grande actividade no ensino, criando os primeiros mestrados na área da História da Arte no país.
José-Augusto França – que, no meio académico, é considerado responsável por estabelecer um cânone na historiografia da arte do século XIX e XX – costumava dizer, em entrevistas, que a sua ligação à arte era “quase respiratória”.
“A Arte em Portugal no Século XX”, “O Retrato na Arte Portuguesa” e o 3.º volume do “Dicionário da Pintura Universal”, publicado pela antiga editora Estúdios Cor, inteiramente dedicado à “Pintura Portuguesa”, que coordenou com Mário Chicó e Armando Vieira Santos, constituem três marcos nesse cânone, numa obra que se estende por mais de meia centena de títulos e décadas de trabalho e de investigação.
Como autor de referência, na área das artes visuais e da cultura, entre as suas obras destacam-se igualmente os estudos como “História da Arte Ocidental 1780-1980”, “Do Romantismo 1824, Antes e Depois”, “Lisboa Pombalina e o Iluminismo”, “Os Anos 20 em Portugal” ou o ensaio dedicado ao pintor flamengo do século XVI Hieronymus Bosch, autor das “Tentações de Santo Antão”, “Bosch o Visionário Integral”.
Escreveu igualmente monografias sobre artistas como Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros, Rafael Bordalo Pinheiro, António Carneiro, Columbano, José Malhoa, António Pedro. Foi um dos maiores especialistas em Maria Helena Vieira da Silva.
Dedicou volumes de ensaios à interpretação e reflexão histórica, sociológica e estética sobre problemas da arte contemporânea, como “Cem Exposições”, “Quinhentos Folhetins” e os “Oito Ensaios sobre Arte Contemporânea”, publicados nos anos de 1960, que marcaram desde então a abordagem crítica da expressão artística.
No domínio da ficção, publicou um primeiro romance em 1949, “Natureza Morta”, seguindo-se, em 1958, um livro de contos, depois fez um prolongado interregno, voltando a publicar com mais regularidade, lançando obras como “Buridan” (2002), “A Bela Angevina” (2005), “José e os Outros” (2006), “Ricardo Coração de Leão” (2007), “João sem Terra” (2008) e “A Guerra e a Paz” (2010).
Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1944, partiu para Paris como bolseiro do Estado francês, em 1959, onde permaneceu até 1963, realizando estudos com o sociólogo e historiador Pierre Francastel.
Obteve os graus de doutor em História pela Universidade de Paris em 1962, com “Une Ville des Lumères: la Lisbonne de Pombal”, e fez o doutoramento em Letras pela mesma universidade em 1969, com “Le Romantisme au Portugal”.
Na capital francesa, a que se manteve sempre ligado, conviveu com intelectuais portugueses ali exilados, como António José Saraiva e Joaquim Barradas de Carvalho, e conheceu figuras destacadas da cultura francesa, como o filósofo e crítico literário Roland Barthes, o poeta André Breton, o militante Daniel Cohn-Bendit, nome destacado do movimento estudantil do Maio de 68, e o galerista Daniel-Henry Kahnweiler, que lhe contava histórias sobre o artista plástico Picasso.
Para a capital francesa, comissariou mostras como “Soleil et ombres: l’art portugais du XIX siècle”, que levou ao Petit Palais, depois de ter concebido “Os anos 40 na arte portuguesa”, para a Fundação Calouste Gulbenkian.
O seu interesse pela pintura manifestara-se em 1946, na sequência de viagens a Espanha e Paris, seguidas de viagens à Europa e às Américas até se fixar em Paris, em 1959.
Nas décadas de 1940 e 1950 foi uma das figuras mais dinâmicas e influentes da vida cultural portuguesa.
Entre 1947 e 1949, participou nas actividades do Grupo Surrealista de Lisboa, tendo um papel polémico de oposição ao neo-realismo e aos seus protagonistas.
Na década de 1950, assumiria a defesa do abstraccionismo, tendo organizado o primeiro salão português, dedicado a esta expressão, na Galeria de Março – surgida na sequência da mostra surrealista na antiga Casa Jalco, ao Chiado -, que dirigiu entre 1952 e 1954 (em parte com Fernando Lemos).
Publicou os seus primeiros artigos de crítica de arte no Horizonte, Jornal das Artes, tendo a partir daí uma extensa colaboração em jornais e revistas da especialidade de onde podem destacar-se Unicórnio (1951-1956), Art d’Aujourd’hui, Colóquio Artes, da Fundação Calouste Gulbenkian, que dirigiu entre 1970 e 1996, e a KWY, lançada em Paris pelo colectivo português Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, João Vieira, José Escada e Gonçalo Duarte, a que se associaram os artistas Christo e Jan Voss (1958-1964).
Começou a fazer crítica de cinema em 1940, no jornal “O Diabo”, quando foi dirigido pelo historiador Fernando Piteira Santos, que tinha sido seu colega na Faculdade de Letras.
José-Augusto França é autor de uma das obras chave sobre Chaplin, o seu cinema e as suas personagens: “Charles Chaplin – O self made myth”.
Dirigiu o Centro Cultural Português em Paris (1980-1986).
O seu nome também consta na lista de colaboradores da Revista Municipal (1939-1973), publicada pela Câmara Municipal de Lisboa.
A cidade foi aliás alvo de várias das suas obras: “Lisboa, História física e moral” e “28 Crónica de um Percurso” são alguns dos exemplos.
Leccionou na Sociedade Nacional de Belas Artes. Foi professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, desde 1974, onde criou os primeiros mestrados de História de Arte do país.
A opção pela academia de Lisboa aconteceu após a Revolução de 25 de Abril, deixando para trás a certeza de integração no Centro Nacional de Investigação Científica de França (CNRS, na sigla original).
Antigo presidente da Academia Nacional de Belas Artes, membro do Comité Internacional d’Histoire de l’Art e presidente de honra da Association Internationale des Critiques d’Art.
Recebeu a Medalha de Honra da Cidade de Lisboa (1992), as insígnias de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (1991), a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública (1992), a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (2006) e a Medalha de Mérito Cultural (2012), do Governo português.
Desde 2018, a Imprensa Nacional (IN) tem em curso a publicação “Biblioteca José-Augusto França”, que iniciou com o romance “Natureza Morta” e “Charles Chaplin, o Self-Made-Myth”, e que também tem disponível títulos como “Amadeo de Sousa-Cardoso – O Português à Força”.
Nesta casa editorial encontram-se ainda publicados títulos como “Correspondência Jorge de Sena – José-Augusto França” e “O «Ano XX» Lisboa 1946 – Estudos de Factos Socioculturais”.
Para breve, tem a IN prevista a publicação de “Estudos das Zonas ou Unidades Urbanas de Carácter Histórico-Artístico em Lisboa”, levantamento efetuado por José-Augusto França sobre o património da cidade, em 1967, que inclui proposta de “Salvaguarda do Património Artístico Arquitectónico e Histórico dos Bairros Tradicionais da Cidade de Lisboa”, plantas de diferentes escalas, desenhos, um levantamento fotográfico de 292 imagens, realizado no início de 1968, e o texto do historiador.
Nas últimas entrevistas que José-Augusto França concedeu, afirmava, sobre o seu quotidiano, que continuava a ler muito e a ver vários filmes diariamente.