Dos primórdios do feminismo em Portugal, a republicana Ana de Castro Osório é talvez o nome que vem sendo mais recordado.
Mas o feminismo dela era muito limitado e contraditório. Mesmo no contexto da época (primeiro terço do século XX).
Foi pioneira na defesa do direito de voto para mulheres, sim… Mas só para algumas: as intelectuais e as que tivessem um curso superior. Excluía as operárias e as empregadas do comércio, mesmo que alfabetizadas.
Por outro lado, foi gritante o seu divórcio face às mulheres operárias numa greve em Setúbal, em março de 1911. Mesmo depois de uma delas ter sido abatida a tiro pela polícia. Ana de Castro Osório foi uma porta-voz do poder na 1ª República. E refletiu, em grande medida, as contradições desse regime. O que transparece na sua influência na região de Santarém.
Xenofobia
Naquele tempo, publicava-se nessa cidade um jornal chamado «O Debate».
Era um órgão regional do partido dominante na 1ª República: o «Partido Democrático», de Afonso Costa e Norton de Matos.
Durante a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), esse jornal scalabitano publicou dois artigos de Ana de Castro Osório, ambos em destaque na primeira página.
O primeiro era uma peça de propaganda a favor da entrada de Portugal na guerra. Com um argumentário xenófobo, onde não faltavam insinuações de traição e covardia para quem ousasse discordar.
A seu ver, o interesse de Portugal era combater ao lado dos “povos da nossa raça”, da civilização greco-latina. Referia-se à aliança entre França e Inglaterra, à qual também pertencia a Rússia dos czares.
Mas Ana de Castro Osório dizia sentir-se “bem ao lado da Rússia, autocrática e bárbara”, alegando que a guerra lhe traria um “alvorecer de liberdade”.
E contrariar esta posição seria “uma traição de lesa-pátria”, que só merecia o seu “desprezo individual e o castigo, que juridicamente se dá aos traidores”.
A culpa pela guerra, essa, era só da Alemanha. E aqui não se referia apenas ao governo do Kaiser, mas ao conjunto do “povo alemão, que há quarenta anos preparava à raça latina esta ratoeira, armando-se até aos dentes como um bandido” [«O Debate», 20/01/1916, pág. 1].
Como se os governos e classes dominantes em Inglaterra e França não tivessem feito o mesmo, com igual cobiça de grande potência. Por sinal, mais adiantados na rapina de colónias, matérias-primas e mercados…
“A paz é a traição”
O segundo artigo de Ana de Castro Osório no jornal «O Debate» é uma crítica ao então arcebispo de Braga, por este ter mandado rezar pela paz.
Reiterando a insinuação de traição, contrapunha àquele sacerdote católico que “o que nós queremos não é a paz, é a vitória”, com o “triunfo da nossa raça” e da “civilização latina a que pertencemos”.
Às mães dos soldados, Ana de Castro Osório dizia: “que não chorem seus filhos mortos no campo da luta”. Os que deviam ser chorados eram outros: os desertores e os que se rebelavam contra a carnificina.
Porque eram umas “criaturas miseráveis”. As preces, dizia ela que deviam ser “não pela paz que seria a derrota”, mas “pela vitória que vá até ao fim”. E reiterava, assim, que advogar “a paz é a traição” [«O Debate», 31/05/1917, págs. 1-2].
Isto numa altura em que, naquela “grande guerra”, já tinham morrido milhões de pessoas…
Outras feministas
Mais do que na defesa do feminismo, foi sobretudo na propaganda da guerra que Ana de Castro Osório se fez ouvir, na imprensa scalabitana.
O que está conforme, afinal, com a sua posição de porta-voz do poder dominante à época. Desde 1913 que ela estava filiada no tal «Partido Democrático».
Essa contradição não apaga o seu contributo na luta pela igualdade de género. Num contexto nacional bem retrógrado. No qual, por fim, até às mulheres intelectuais a 1ª República negou o direito de voto.
Mas é de realçar que houve à época outras feministas com ideias mais avançadas e abrangentes. E inclusive com mais expressão no Ribatejo Como foi o caso da republicana Maria Veleda e da socialista Angelina Vidal. Falaremos delas em próximos artigos.
LUÍS CARVALHO
INVESTIGADOR