A Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes, recebe no dia 1 de Março, às 15h00, a apresentação do livro “Cão, simplesmente”, da autoria de João Carlos Pina da Costa. A obra, lançada no início deste mês, narra, em tom autobiográfico, a vida de um cão marcado pelo destino e pela imprevisibilidade do comportamento humano. Mais do que um relato ficcional, este livro é uma reflexão profunda sobre a forma como as sociedades modernas encaram os animais de estimação, abordando questões como a domesticação, o abandono e o papel dos cães na vida dos seus donos.

Em entrevista ao Correio do Ribatejo, o autor fala sobre a origem do livro, a forma como a sua visão do mundo influenciou esta obra e o papel que a literatura pode desempenhar na sensibilização para o respeito e a ética na relação entre humanos e animais.

“Cão, simplesmente” é descrito como uma história de vida em tom autobiográfico, mas contada na pele de um cão. O que o motivou a escolher esta perspectiva para abordar a relação entre humanos e animais?

Começou com um singelo conto infantil contado aos meus netos. Encontros e reencontros entre “guardador de netos” (eu próprio) e “guardadores de cães”, nos jardins e parques da cidade (Lisboa), promoveram-no a um conto para crescidos. O Cão, personagem principal do livro, tomou o freio nos dentes, fugiu ao guião, empolgou-se e fez-se protagonista de romance.

A obra é simultaneamente uma reflexão e uma provocação sobre o lugar dos animais nas sociedades urbanas. Acredita que a forma como tratamos os nossos animais de estimação revela algo mais profundo sobre a nossa própria humanidade?

Nasci e cresci em aldeia onde os cães tinham a liberdade das crianças. Actualmente, vivo num bairro onde crianças e cães vivem em recintos fechados e “presos a trelas”. Na minha aldeia o cão era um amigo. No meu bairro o cão é família. No passado, pessoas e animais tinham um desenvolvimento moroso e singular. Hoje há produção padronizada e em massa seja para abate, nos animais, seja para um pensamento único ao serviço do poder e do dinheiro, nos humanos.

O livro retrata o cão como um ser sujeito ao destino e à imprevisibilidade do comportamento humano. Na sua visão, o que falta para que a nossa relação com os animais seja mais ética e responsável?

Nunca como hoje houve igual sensibilidade para a condição animal. Sentimos que mais importante do que viver é não sofrer. Estendemos esse sentir aos animais e reconhecemos-lhes o direito a uma vida feliz. A nossa sociedade, porém, é individualista e competitiva; somos incapazes de ver a perspectiva do outro. A competição é a afirmação da nossa superioridade sobre o outro. Não é um defeito humano, é uma lei da natureza. Tão pouco é uma crítica, antes uma constatação. Ora, nas sociedades actuais a afirmação sobre o outro faz-se pelo ter e o colateral desperdício. Gostamos de ter animais, mas esquecemos, muitas vezes, que não temos condições materiais (sobretudo na cidade) para lhe oferecer uma existência feliz. Somos imponderados a adquirir, mas, com a mesma facilidade, nos desfazemos do que temos, sejam coisas sejam animais. E quando se fala de condições para ter animais não nos referimos só aos exíguos apartamentos, mas igualmente às condições das cidades: invasão de todos os recantos por carros, falta de espaços livres para cães e crianças. Estes, cães e crianças, disputam os poucos espaços verdes, jardins e largos que sobejam.

O João Carlos Pina da Costa cresceu no coração das Terras do Demo, um território fortemente presente nas obras de Aquilino Ribeiro. De que forma essa geografia e essa literatura influenciaram a sua escrita e a sua forma de olhar o mundo?

Nasci e cresci a cerca de 3 km onde Aquilino Ribeiro nasceu e cresceu. Com pouco mais de 6 décadas de permeio, partilhamos a mesma geografia e idêntico contexto cultural (até meados do século passado, 100 anos pouco progresso representavam nas Terras do Demo – tal como ele, nasci em aldeia sem electricidade, sem água canalizada, sem televisão, sem estradas que ligassem à civilização…). Até avoengos comuns partilhamos. Li e reli grande parte da sua obra. Não admira, pois, que muitos leitores conhecedores da obra de Aquilino encontrem afinidades na linguagem dos meus livros (ressalve-se a invencível distância a que está a mestria de Aquilino). Ciente disso e correspondendo ao apelo dos leitores, a versão digital do “Relatório do Regedor” (a minha obra mais regionalista) já tem em apêndice um glossário de regionalismos, o qual constará de nova edição impressa. Com efeito, a narrativa de algumas obras minhas decorre em tempos de Aquilino, no mesmo espaço geográfico em que cresceu, e retrata a gente e os costumes que ele mesmo retratou. A linguagem, os costumes, e o inconsciente cultural do povo que ele tão bem descreve são os mesmos que dão substância ao “Relatório do Regedor”, por exemplo. A separar-nos, apenas a genialidade literária de Aquilino.

Foi professor, gestor de entidades públicas e colaborador na imprensa regional. Como é que essa diversidade de experiências moldou o seu olhar sobre a sociedade e a forma como escreve?

As águas que o rio leva transportam fragmentos do seu caminho. As vivências passadas são o sustentáculo e condicionante do presente. Nenhuma das minhas obras é pura abstracção; o meu passado e a riqueza das minhas vivências, estão presentes em cada um dos meus livros, mesmo em “Cão, simplesmente”, que, para o leitor mais distraído, poderá passar por uma simples história de um cão.

Um título para o livro da sua vida?

Malhadinhas.

Viagem?

Ao futuro.

Música?

Hino à Alegria.

Quais os seus hobbies preferidos?

Ler e escrever.

Se pudesse alterar um facto da história, qual escolheria?

Erradicava as serpentes e as maçãs do Paraíso.

Se um dia tivesse de entrar num filme, que género preferiria?

Uma coboiada (acompanhando os ventos que sopram da América).

O que mais aprecia nas pessoas?

Sensatez.

O que mais detesta nelas?

Que se ajuízem de detentoras da verdade.

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