O património das Misericórdias é um poderoso veículo de conhecimento e auto-conhecimento, tanto ao nível das instituições como das comunidades. Este espírito, sempre acompanhado de uma cultura artística fortemente ligada à religião católica, originou movimentos culturais que marcaram épocas, com estilos arquitectónicos e artísticos identificáveis, portadores de uma riqueza patrimonial incalculável.

Neste particular, o conjunto patrimonial da Santa Casa da Misericórdia representa um capítulo importante da história artística de Torres Novas, sendo fundamental para compreendermos os gostos, as tendências e também as possibilidades de concretização de quem encomendou e de quem executou todo esse património.

O percurso feito ao longo do património imóvel e móvel da Misericórdia revela não só o património secular da Instituição, como também uma parte significativa da história da arquitectura e da arte em geral. Não é, porém, um caminho fácil de percorrer, pela vastidão patrimonial existente.

Ana Lopes, responsável pelo Departamento de Actividades da Misericórdia de Torres Novas, refere isso mesmo: “trata-se de um património vasto, muito rico, que tem sido alvo, inclusive, de teses de mestrado em História de Arte e de vários estudos académicos”.

Actualmente, muitas das peças da Misericórdia Torrejana estão à guarda do Museu Municipal Carlos Reis, cuja colecção de arte sacra é estruturante do museu, constituindo o núcleo expositivo de longa duração “Imagens do Homem, Idades de Deus”, instalado no piso térreo do edifício.

Esta exposição integra cerca de uma centena de peças de arte, oriundas de diversas igrejas e capelas do concelho de Torres Novas, e um importante depósito de obras pertencentes à Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas. Destaque para as esculturas, como as duas representações da Virgem da Expectação/Nossa Senhora do Ó e Santa Ana com a Virgem, e para a pintura quinhentista, além de um quadro da Escola de Caravaggio e de um outro representando a ‘Adoração dos Pastores’, de António Campelo, datado de 1570.

“O legado artístico da Misericórdia é uma porta entreaberta para conhecer, não só a instituição, como também para estudar e analisar cientificamente a evolução da arte, a evolução social através dos tempos, a religiosidade ligada à Arte Sacra, dando achegas importantes dos primórdios da globalização até à actualidade”, refere.

A Misericórdia detém, ainda, a mais importante rede de imóveis patrimoniais do concelho de Torres Novas: Igreja da Misericórdia, Igreja do Carmo, Capela de Santo António, Capela de Nossa Senhora de Lourdes (Outeiro Grande), Capela do Vale e Capela do Senhor Jesus dos Lavradores, anexa à igreja de Santiago.

Neste conjunto, a Igreja da Misericórdia é um dos monumentos mais emblemáticos do património da cidade. Julga-se que a construção do templo date de meados do século XVI, com trabalhos de embelezamento e de decoração que se estenderam pelos dois séculos seguintes.

O edifício tem como principais símbolos de referência o pórtico renascentista, o tecto seiscentista, a tribuna dos mesários e os três retábulos de talha dourada. De salientar, também, a porta com elementos manuelinos, situada fora do edifício, que caracteriza a envolvência daquele espaço.

Classificada como Imóvel de Interesse Público em Janeiro de 1986, possui ainda a “Caixa do Senhor Morto, quadros de Miguel Figueira, o Sacrário, de Manuel da Silva, (1694), para além do Presépio de Machado de Castro, uma doação feita à Misericórdia, que foi incluído na estética da Igreja”, segundo dá nota a responsável. 

“Trata-se de uma Igreja situada paredes-meias com o Castelo de Torres Novas, que sofreu obras de vulto, primeiro em 2000 e depois em 2011, que permitiram o restauro das obras de arte e intervenções na própria estrutura do edifício possibilitando a sua abertura ao culto e fruição da população”, explicou.

Hoje, o templo, que, segundo nos conta o provedor, António Gouveia da Luz, serviu de quartel-general ao exército de Napoleão aquando das invasões francesas, é muito requisitado para a realização de concertos devido à sua “acústica extraordinária”.

“Tem sido uma preocupação da Misericórdia cuidar do seu património”, afirma Gouveia da Luz, revelando que, recentemente, firmou um protocolo com a Direcção-geral das Autarquias Locais, para a realização de arranjos exteriores num outro imóvel da Misericórdia, a Igreja do Carmo

“É uma obra necessária, à qual se seguirá, numa fase posterior, uma intervenção no interior. Temos que ir fazendo as coisas passo a passo, porque não podemos colocar em causa a nossa actividade principal, que é a assistência aos nossos utentes”, faz notar.

Com um inventário realizado em 2014 no âmbito de um Mestrado em História de Arte do qual constam mais de 500 entradas, diz Gouveia da Luz, “o património da Misericórdia é extremamente rico e representativo. Não se pode fazer a História de Torres novas sem a cruzar com a história da Misericórdia”.

A instituição, que assinala 485 anos de serviço à comunidade tem ainda à sua guarda a Capela do Vale, o templo mais antigo da zona, que remonta ao tempo dos visigodos, entre 660 e 715, e que abre ao culto apenas uma vez por ano, na altura da Pascoela.

Um edifício que foi sofrendo alterações sucessivas, uma das quais em 1783, aquando da instalação da Roda dos Enjeitados, que funcionou até 1869, situando-se a sua arquitectónica entre o Gótico do séc. XIV e uma presença do Manuelino, na Capela-Mor.

“Esta Ermida foi, em tempos, uma albergaria, um centro de acolhimento de crianças enjeitadas e é por isso que a Misericórdia, ainda actualmente, tem esta tradição de resposta a crianças. Muitas vezes, somos confrontados com pedidos de esclarecimento de origens de famílias. Pedem-nos os registos da roda que, hoje, fazem parte do acervo do Arquivo Municipal e Distrital”, esclarece.

Nesta capela destaca-se a sua entrada alpendrada e a simplicidade do seu estilo românico da era visigótica. No interior, salientam-se as esculturas de pedra policromada, os azulejos seiscentistas trazidos da Capela de Monserrate (Meia Via) e os retábulos da Senhora e de S. Mateus.

Apesar da riqueza e diversidade do seu património, para Gouveia da Luz o “valor” da Misericórdia de Torres Novas “é feito da sua história de entrega à sua missão. Das pessoas, das vivências, da doação sincera aos outros. É esse o valor incalculável da nossa Santa Casa”.

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