Fernando Frazão, motorista de profissão há quase 17 anos, saiu do anonimato, no passado dia 21 de Janeiro, por ter dado ‘boleia’ ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Natural de São Vicente do Paúl, concelho de Santarém, mostrou, durante uma viagem entre Lisboa e Condeixa-a-Nova, quais são os principais problemas do sector. Com esta viagem, Marcelo cumpriu a promessa, assumida em Dezembro passado à Associação “Motoristas do Asfalto”, da qual Fernando é dirigente.

Primeiro de tudo, como foi viajar com o Presidente da República? Foi uma viagem normal, sem qualquer tipo de problema nem nervosismo, visto que já tinha feito um pequeno percurso, em Dezembro, e almoçado com ele na zona da Mealhada.

O que é que Marcelo Rebelo de Sousa lhe transmitiu durante a viagem? Durante a viagem focámo-nos nos principais problemas da profissão. Ele não tinha noção de que todo o mundo depende desta profissão.

Mostrou abertura perante as reivindicações dos motoristas? Sim, de certa forma, apesar de na carta que lhe escrevi o ter informado da precariedade em que vivemos neste sector.

Quais são os principais problemas do sector? Os principais, começando pelo mais importante a meu ver, são as cargas e descargas. Um motorista que arranque às 21 horas tem de fazer todo um percurso de tempo máximo de condução e ainda lhe metem nas mãos um porta-paletes, manual ou eléctrico, para o qual não dispõe de formação. É vergonhoso não terem respeito nenhum pelo motorista. Muitas das vezes temos que estar à chuva, ao vento, ao frio, ao calor, para poder registar os camiões sem uma única casa de banho. Temos também uma profissão de desgaste rápido que não é considerada. Os bailarinos, por exemplo, conseguiram recentemente a reforma aos 55 anos, um motorista só a tem aos 65. Temos falta de parques, muitos deles não têm segurança nenhuma, não há casas de banho para fazer a nossa higiene e muitas das entidades obrigam-nos a fazer o trajecto por estradas nacionais, derivado aos altos custos das portagens. Baixos ordenados, comparando com um motorista da Bélgica por exemplo, quando a nossa qualificação e mão-de-obra são precisamente as mesmas. Um motorista deveria receber mais visto que muitas das vezes tem que fazer do seu camião a sua própria casa.

Foi importante para o sector ter a presença do Presidente da República? Esperava este impacto? Sim, sem dúvida, foi muito importante dar esta visibilidade pois durante anos tentaram esconder a nossa profissão. Foi um impacto de grande força para nós e de certa forma, sensibilizámos as pessoas para a nossa profissão, pessoas que dependem de nós para ter, por exemplo, o que comer e onde se sentar no seu dia-a-dia.

Houve alguma situação caricata durante a viagem? Sim, estávamos a entrar em directo para um meio de comunicação social e derivado ao mau piso da estrada nacional onde seguíamos, a cama de cima desprendeu-se e foi toda a viagem em cima da cabeça da repórter.

É dirigente dos “Motoristas do Asfalto”. Como nasceu este projecto? Este projecto nasceu comigo e com mais três amigos, um deles Álvaro Nunes, também motorista de profissão, mas que por motivos pessoais teve de se ausentar. O projecto nasceu para ajudar os motoristas no seu dia-a-dia. Já ajudámos crianças com donativos. Espero que esta associação consiga elevar a voz de quem faz o asfalto a sua vida, não só na profissão de motorista, mas a de todos que nele transitem.

Que objectivos tem para o futuro? Neste momento, os meus objectivos são focar-me na minha profissão e continuar a sensibilizar as pessoas para o que somos. Tenho algumas ideias, mas esse será um projecto mais moroso, esperando que mereça sempre apoio, o que não é fácil neste mundo.

Há quantos anos é motorista de pesados? Sou camionista há 16 anos já a caminho de 17, mas tenho contacto com camiões toda a minha vida. O meu pai tinha camiões, por isso esse contacto vem desde criança.

É um trabalho que faz por gosto? Sim, apesar de existir muita burocracia, as longas esperas para descarregar ou carregar, o fluxo rodoviário, o stress, o pára-arranca, o pior de tudo é a solidão, apesar de hoje em dia haver meios de comunicação que diminuem a saudade.

Tem alguma história que destaque das muitas viagens que fez? Tenho muitas! Mas existe uma que me marcou e para toda a vida. Em Espanha, na zona de Burgos, tinha jantado e vindo até à rua com um colega. Naquele momento de conversa apareceu o inesperado: uma pessoa com sapatos usados ao longo de largos quilómetros, com roupa de quem não se mudava há uns largos meses e barba grande, como se de um pedinte se tratasse. Trazia o seu cartão de cidadão e uma folha no bolso, com os locais por onde tinha de atravessar até chegar a casa. Conversa puxa conversa e descobri que o senhor já trazia um mês de viagem a pé de Limoges, centro de França, e queria chegar à sua terra natal, Aveiro, pedindo boleia e comendo apenas o que lhe davam. Por momentos não hesitei, nem pensei na minha integridade física e ofereci-me para o levar a casa. A minha convicção de uma noite bem passada até às quatro da manhã, juntamente com os meus amigos e depois de umas cervejas fez-me responder: “amanhã o amigo vai comigo até Vilar Formoso, visto que eu vou para Lisboa e você precisa de ir para Aveiro”. No outro dia acordei, fui até ao restaurante para fazer a minha higiene e lá estava o senhor à minha espera sem relógio, mas aguardava por mim à hora marcada. Tinha dormido mais uma noite na carrinha apreendida pela Guardia Civil a marroquinos, por circular sem seguro para Marrocos, depois de ter sido apanhado a andar a pé na via rápida, só com o mapa das terras por onde passava e o cartão de cidadão. Homem de palavra, e vendo a situação, no fim da minha higiene convidei-o a entrar no restaurante, deparei-me com a repulsa de estar acompanhado com um sem-abrigo. Não vergando aos meus princípios, solicitei que fosse dado de comer àquele ser humano. Perguntei-lhe se queria vinho para acompanhar, mas respondeu-me que só desejava água. Olhares rasgados de medo ou de nojo perante a criatura, quando solicitei a chave da casa de banho para este o senhor tomar banho. Fui ao camião, tirei giletes, toalha e roupa (mesmo sendo de tamanho superior), não liguei. Aquele ser precisava de um banho quente e roupa lavada para vestir. A sua simplicidade fez-me mandar a roupa velha e os sapatos, que nem sola tinham, ao lixo. No fim de quase restringirem o banho ao senhor e ameaçando com a Guarda Civil, começámos a nossa viagem com roupa lavada, copo de água tomado e de barriga alimentada, até à BP de Vilar Formoso. Era uma pessoa de poucas falas mas sorriu de felicidade quando a meta estava quase alcançada. Estaria no sítio certo à hora certa? Talvez! Contudo, não me valorizo pelo que fiz. Fi-lo com consciência. Chegámos à BP de Vilar Formoso e presenteei-o com mais uma bifana e fiquei cheio de pena de não puder conseguir colocá-lo junto dos seus, em Aveiro. Desinibido como sou quando se trata de ajudar, olhei em volta e vi que tinha chegado um nosso membro dos “Motoristas do Asfalto”, o nosso camarada Lino, que mesmo sem o conhecer, a não ser das redes sociais, expliquei-lhe a situação e ele prontificou-se a levar o homem. Ironia do destino, ia descarregar a dois quilómetros da residência do senhor. Mais uma vez, prontifiquei-me a arranjar um farnel, as suas expressões faciais de agradecimento chegaram-me e o meu dever ficou cumprido. Obrigado a este senhor por esta lição de vida. São estes pequenos gestos que me fazem pensar que vale a pena andar aqui. Hoje pelo próximo, amanhã por mim…

Que conselhos daria a quem quer ser motorista? Hoje em dia, aos novos, posso só aconselhar a terem muita paciência e força de vontade para vencerem nesta profissão. Depois de fechar a porta de casa sabemos que vamos, mas não sabemos se regressamos.

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