Quando se cruza o portão do secular Lar de Santo António, em Santarém, é impossível não sentir o peso da história e, simultaneamente, a leveza de um projecto de vida que se renova diariamente. À frente desta instituição – que já ultrapassou os 150 anos de existência – esteve, ao longo de três décadas, Maria Emília Rufino, uma mulher cuja trajectória pessoal se entrelaça com a missão de acolher, proteger e promover o desenvolvimento de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. Nascida sob o sol africano e temperada pelos ventos da mudança que varreram Portugal nas últimas décadas, esta educadora de formação transformou o que poderia ter sido apenas um cargo administrativo numa verdadeira vocação, redefinindo o conceito de acolhimento institucional numa sociedade em constante evolução.

“Procuramos ser aqui um porto de abrigo e um sítio onde eles se encontrem e, no fundo, encontrem o seu caminho. Nós não podemos escolher o caminho de ninguém. É mesmo assim. Temos que lhes dar as ferramentas para eles escolherem, apoiá-los no que pudermos, no que soubermos”, afirma com a serenidade de quem compreendeu que o verdadeiro papel de uma instituição de acolhimento vai muito além do tecto e da alimentação – trata-se de construir futuros possíveis para quem, muitas vezes, teve os seus horizontes precocemente limitados.

Das Terras de África para Santarém: Um Percurso Singular

Maria Emília Rufino nasceu em Angola, na região de Catumbela, Lobito. A sua infância decorreu sob o céu aberto africano, num ambiente que, apesar das suas complexidades, lhe proporcionou uma visão ampla do mundo. “Nasci em África”, recorda com um brilho nos olhos que revela a permanência daquelas paisagens na sua memória. “Tenho muitas saudades”, confessa.

Aos 17 anos, deixou Angola para estudar filologia germânica em Portugal, uma área que não estava disponível no seu país natal. Iniciou os estudos em Coimbra, transferindo-se posteriormente para Lisboa. Enquanto isso, os seus pais permaneceram em Angola – a mãe, farmacêutica, leccionava numa escola em Benguela, e o pai era comerciante.

A transição para Portugal não foi fácil. “Eu, quando vim para Portugal, achei, para a metrópole na altura, que era uma terra velha. Com poucas perspectivas, tudo muito cinzento, escuro, fazia-me uma confusão imensa”, diz, revelando o choque cultural que experimentou.

No entanto, a sua capacidade de adaptação e curiosidade natural permitiram-lhe superar estas dificuldades iniciais. “Acho que me adaptei bem, porque eu sou uma pessoa curiosa. Adaptei-me ao país. Estou bem em qualquer lado. Mas acho que me adaptaria bem a qualquer terra. Eu acho que, sobretudo, gosto das pessoas. E, portanto, tanto me faz estar num sítio como no outro.”

A sua chegada a Santarém ocorreu de forma não planeada. O seu marido, médico, foi colocado no Hospital de Santarém durante o internato. Coincidentemente, Maria Emília estava a estagiar na Escola Industrial e Comercial (actual Escola Secundária Doutor Ginestal Machado), o que facilitou a decisão do casal de se estabelecer em Santarém.

A sua carreira profissional desenvolveu-se no ensino, área que lhe proporcionou grande satisfação. “Tive uma vida profissional gratificante, porque gostei sempre do que fazia. Fui professora na Sada Bandeira há muitos anos”, recorda com evidente nostalgia.

O Encontro com o Lar de Santo António: Uma Nova Missão

O envolvimento de Maria Emília Rufino com o Lar de Santo António começou há cerca de três décadas, através de uma série de coincidências que, olhando para trás, parecem ter sido um caminho traçado pelo destino. “Surgiu através do doutor Bezerra. Surgiu numa altura em que eu conheci o Lar, que estava em obras e em que se via que havia aqui enormes dificuldades. E uma pessoa pergunta-se o que pode fazer para ajudar?”, explica.

Mas havia também uma motivação mais pessoal: “Surgiu também por uma aluna minha, que me preocupava… foram estas coincidências, que não são coincidências, que me levaram a perceber que podia ter um caminho…”, rememora.

Em 1995, Maria Emília Rufino assumiu funções directivas no Lar de Santo António, iniciando um longo percurso de serviço à instituição. Em 2007, tornou-se presidente da direcção.

“Tenho uma família que foi colaborando, porque estas coisas não se fazem sozinhas. Isto tira tempo, dá preocupações e, portanto, estas coisas nunca são de uma pessoa só”, reconhece.

Uma Instituição em Transformação: Do Passado ao Presente

O Lar de Santo António é uma instituição particular de solidariedade social (IPSS) com mais de 150 anos de actividade ligada ao apoio à infância e juventude. Durante a maior parte da sua existência, o lar acolheu exclusivamente raparigas, o que lhe valeu o nome popular de “Lar das Raparigas”. Contudo, desde 2020, a instituição adaptou-se às necessidades contemporâneas e passou a acolher jovens de ambos os sexos, dos cinco aos 18 anos.

“Estamos neste momento com 13 rapazes e 17 raparigas”, revela Maria Emília, ilustrando a nova realidade da instituição. Esta mudança reflecte a evolução da sociedade e a necessidade de manter unidas as fratrias – grupos de irmãos – que necessitam de acolhimento institucional.

Maria Emília Rufino observa mudanças significativas nas razões que levam à institucionalização de crianças e jovens ao longo das décadas. Através da leitura de actas antigas da instituição, ela constatou que “antigamente vinham mais crianças órfãs e por questões de pobreza. Não havia Segurança Social nessa altura… normalmente vinham a pedido das famílias, porque elas não podiam ter as filhas em casa, não havia dinheiro para as criar”.

Actualmente, o panorama é diferente: “Hoje já não é a pobreza que faz com que as crianças venham”. As principais causas contemporâneas são “a desestruturação familiar, a necessidade de proteger as crianças de vários factores, como a violência. Por vezes, também há alguma incapacidade da família em lidar com as crianças”.

O processo também se tornou mais institucionalizado e regulamentado: “Actualmente a entrada depende da Segurança Social, das CPCJ e dos tribunais. Nenhuma criança vem para cá que não tenha tido uma equipa que previamente estudou o problema e que optou por esta solução, normalmente com o apoio da família”.

Também a duração da permanência e os objectivos do acolhimento se transformaram. “No outro tempo, as crianças entravam, sairiam aos 18 anos, que eram as meninas daquele tempo preparadas para o papel que era tradicional da mulher na sociedade, que era a nível das competências domésticas. No fundo era isso. Agora não, não sequer isso. Eles estudam para outras perspectivas de vida e não estarão cá tanto tempo”, explica.

O trabalho desenvolvido no Lar de Santo António assenta num equilíbrio delicado entre proteger as crianças e jovens e promover o seu desenvolvimento. 

A estes desafios soma-se o estigma social, uma realidade que Maria Emília lamenta profundamente. “Acredito, também, que depois haja também o estigma social. É uma coisa que, no fundo, nós tentamos que não transpareça muito. Que sejam os meninos ou as meninas do lar.”

Apesar disso, Maria Emília destaca com particular orgulho as jovens que conseguiram prosseguir estudos superiores. “Os momentos das miúdas que tiraram cursos superiores para nós foram muito significativos. Porque não é fácil”, conta, emocionada.

O Legado de Uma Vida Dedicada aos Outros

Maria Emília Rufino representa um exemplo notável de dedicação ao serviço social e ao bem-estar de crianças e jovens vulneráveis. Ao longo de quase três décadas de envolvimento com o Lar de Santo António, tem demonstrado capacidade de adaptação às mudanças sociais, mantendo sempre o foco na missão essencial: proporcionar um ambiente seguro e acolhedor que permita o desenvolvimento saudável das crianças sob os cuidados da instituição.

A sua liderança tem sido marcada por uma visão de futuro, equilibrada com o pragmatismo necessário para manter a sustentabilidade da instituição. Ao defender a renovação das equipas e ao projectar novas valências como o projecto de uma creche, Maria Emília demonstra um compromisso não apenas com o presente, mas também com a continuidade e evolução dos serviços sociais oferecidos pelo Lar de Santo António em Santarém.

Quando questionada sobre quem é Maria Emília Rufino, a sua resposta revela a humildade que caracteriza a sua personalidade: “Sou uma pessoa normalíssima… Acho que sou uma pessoa simples”.

Esta simplicidade, contudo, esconde uma vida extraordinária de serviço aos outros, um legado que continuará a influenciar positivamente a vida de inúmeras crianças e jovens muito depois do fim do seu mandato como presidente do Lar de Santo António. Como ela própria afirma, o Lar representa para Santarém “a mão das pessoas dada às crianças”, uma metáfora que ilustra perfeitamente a sua visão do papel da instituição: “É dar a mão, no sentido de as ajudar a encontrar o seu caminho. Nós não podemos fazer caminho por ninguém, mas podemos tentar amparar e guiá-las nesse caminho”.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Leia também...

Maria Martins conquista nova medalha de prata nos Europeus sub-23 de ciclismo

Na disciplina de scratch.

Caneiras recebe festival dedicado ao peixe do rio

A União de Freguesias da Cidade de Santarém, com o apoio do…

PSD Cartaxo quer juros ao FAM canalizados para Fundo de Apoio à Economia Local

Os vereadores do PSD na Câmara do Cartaxo querem que o Governo…

CPCJ e Município da Chamusca associam-se à campanha “Abril Mês da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância”

A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), da Chamusca, em…