António Cardana, 80 anos, Major, foi um dos militares que, no 25 de Abril de 1974, ‘segurou’ posição na Escola Prática de Cavalaria: em Santarém, mantiveram-se aquarteladas e de “prevenção rigorosa” tropas significativas, para combaterem, caso fosse forçada a voltar para trás, a coluna militar que seguiu para a capital sob comando directo de Salgueiro Maia. Na altura, o sargento enfermeiro Cardana tinha 32 anos e nunca teve dúvidas em apoiar os companheiros e lutar contra o regime. Militar experiente, foi um dos primeiros a embarcar para Angola, logo em 61. Prestou serviço no Hospital Militar de Bissau, no Hospital Militar de Lisboa e, depois, em Coimbra. Seria, mais tarde, colocado na Escola Prática de Cavalaria, em 1971. Natural das Abitureiras, António Cardana foi presidente do núcleo da Liga dos Combatentes de Santarém, estrutura à qual se mantém ligado, ainda hoje, como vogal.
Salgueiro Maia recebeu a ordem de operações para a Escola Prática de Cavalaria (EPC) na noite de 23, numa reunião com “um contacto do movimento” na Pastelaria Bijou, em Santarém. “Fui vigiado e seguido por dois homens que se deslocavam num Corola”, relata o capitão, no relatório da “Operação Fim Regime”.
No dia 24 pela manhã, Maia começou a informar os primeiros furriéis sobre as manobras em curso, até então só do conhecimento de nove oficiais. “Mostraram-se totalmente colaborantes.”
Além de Salgueiro Maia, também a EPC estava sob vigilância da DGS, o que obrigou aos “graduados aliciados” a entrarem no quartel individualmente para não levantar suspeitas. Os militares foram se fechando nos quartos “onde se combinaram em pormenor as operações” ao mesmo tempo que se mantinham atentos aos rádios “a fim de ouvir o sinal de execução”. Às 22h55, os Emissores Associados de Lisboa passam “E Depois do Adeus”.
Cabe à Renascença, vinte minutos depois da meia-noite, pôr no ar “Grândola Vila Morena”, o segundo sinal.
Foi já na madrugada de 25 de Abril, às 00h45, que os oficiais da EPC se aproximaram do Ten. Cor. Sanches, “único oficial superior que permanecia no Quartel”, para informar que a adesão era total, não tendo conseguido a adesão deste oficial”. À 01h30m “deu-se ordem para acordar todo o pessoal e formarem na Parada onde cada comandante de Esquadrão pôs ao corrente da situação”. Às 03h20 todo o pessoal se encontrava equipado e às 03h30m arrancaram para Lisboa.
À chegada à capital, por três vezes se cruzaram com autoridades policiais e por três vezes estas optaram por nada fazer. Também aquando da “entrada em dispositivo no Terreiro do Paço”, às 05h50, a PSP que cercava a zona decidiu não interferir e antes “colaborou a isolar” a zona da população. A esta hora, já a RTP e o RCP tinham sido tomados e o primeiro comunicado do MFA emitido.
Nesta altura, perto das 05h00, Marcello Caetano é contactado pelo director-geral da PIDE, Major Silva Pais, e é informado que a Revolução na rua. O presidente do Conselho é aconselhado a refugiar-se no quartel da GNR no Carmo.
Com Salgueiro Maia posicionado no Terreiro do Paço foram chamados pelo governo outros pelotões que, todavia, acabaram por se juntar ao movimento ou render sem resistência, incluindo os que guardavam o ministério do Exército. “Deste pessoal, sete homens permaneceram dentro do ministério por as portas se encontrarem fechadas, tendo sido a estes homens que o ministro do Exército deu ordens para abrir um buraco na parede de ligação com o ministério da Marinha, por onde fugiu”, explica Salgueiro Maia. Por este buraco, fugiriam ainda os ministros da Defesa, do Interior, da Marinha, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e o governador militar de Lisboa.
Nesse mesmo dia, 25 de Abril de 1974, pelas 07h00, António Cardana, na altura sargento enfermeiro colocado na Escola Prática de Cavalaria, apresentava-se no destacamento do Quartel da Donas, onde é hoje o Comando da PSP de Santarém.
Era dia de incorporação de recrutas destinados a sargentos e oficiais milicianos na EPC e António Cardana estava responsável pela elaboração dos relatórios.
“O médico via todos, um por um, e eu elaborava o relatório. Era uma espécie de inspecção. Nesse dia (25 de Abril), eu apresentei-me no destacamento, como marcado, mas a porta estava fechada. Um oficial de dia informou-me que não haveria incorporação e mandou-me apresentar na EPC”, conta ao Correio do Ribatejo.
“Eu já sabia do que se estava a passar. Antes do 25 de Abril, circulou na Escola um documento confidencial, que era passado de mão em mão, entre oficiais e sargentos a informar do que se estava a preparar. Quem me deu o documento, pediu confidencialidade. E pediu para eu dar a uma pessoa em quem tivesse confiança também”, conta, revelando: “Era apenas um documento, assinado com nome fictício. Já não me recordo ao certo do conteúdo, mas explicava o que iria acontecer, sem mencionar quando”.
Esse ‘quando’ tinha chegado: “Quando cheguei à Escola Prática, o portão estava fechado. A Porta D’Armas entreaberta”, recorda. “Estavam lá os então capitães Garcia Correia e Correia Bernardo e, à porta, o nosso Major, um Tenente Coronel e o segundo comandante da Escola, à civil. Esses, não alinharam”, conta.
“Quando cheguei, pedi para entrar e foi-me dito para esperar. Eles saíram, os três, e eu entrei, juntamente com um outro companheiro que, entretanto, tinha chegado. Seriam umas 8h00 da manhã. E foi-me dito: “não entram, sem conversarmos””, rememora.
Foi, portanto, ali, à entrada da EPC que António Cardana foi informado do golpe militar que estava em curso: “eu já tinha ouvido, também, algumas notícias de manhã e sabia que o nosso pessoal tinha saído para Lisboa”.
Disseram-me: “não vai acontecer o mesmo que aconteceu nas Caldas, custe o que custar. O pessoal tem que entrar na Escola. Se vocês quiserem, muito bem, se não, podem ir para casa”.
“Eu perguntei pelo nosso comandante e foi-me dito que não estava lá… Ou, melhor, o nosso comandante é o Sr. Major Costa Ferreira”, revela, com um sorriso.
António Cardana não teve dúvidas e decidiu ficar e assumir o seu posto: “olhe, o meu lugar é este, é aqui que fico”, respondeu, prontamente.
Escola Prática de Cavalaria teve “papel fundamental” na revolução de Abril
“Quem ficou, tinha alguns receios, nomeadamente o que nos aconteceria, no futuro, caso o golpe falhasse. Mas não arredámos pé. Estivemos mais de um mês em que nunca fomos a casa, sempre de prevenção. Sempre no quartel”, afirma António Cardana.
Segundo relata, no interior da EPC estariam mais de duas centenas de militares: “oficiais deviam ser uns 50, do quadro. Sargentos, éramos 70 ou 80. Fora as praças e os milicianos. Mas, felizmente, correu bem, e ainda bem”, desabafa.
O ‘Golpe das Caldas’, que teve lugar na madrugada de 16 de Março de 1974, e que era suposto juntar diferentes unidades militares espalhadas pelo País, e que acabou por se limitar ao Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, “foi espoletado antes do tempo, mas serviu de balão de ensaio para o 25 de Abril”.
“Esse golpe falhado, quanto a mim, serviu para que houvesse uma melhor preparação”, referiu, revelando que, na madrugada de 25 de Abril, foi preparada a defesa da Escola Prática de Cavalaria (EPC) e “seis pontos estratégicos da cidade foram fortificados”, entre os quais a zona da Rafoa, do Moinho de Fau, do Cemitério, das Portas do Sol e São Bento.
“Era para ir até ao fim e a hipótese que havia era Santarém resistir. Santarém tinha todas as potencialidades para ser uma cidade de resistência, não só pelo valor geográfico em termos militares – situar-se num planalto e estar rodeada de povoações e vilas que davam garantias de apoio à resistência -, mas também pela gente que tínhamos a certeza de que estaria ao lado dos militares e inclusive disposta a apoiar”, acrescentou.
Em Santarém, mantiveram-se tropas significativas, aquarteladas e de “prevenção rigorosa” dentro da Escola Prática de Cavalaria para combaterem, caso fosse forçada a voltar para trás a coluna militar que seguiu para Lisboa sob comando directo de Salgueiro Maia, apesar desse “plano B” de contingência, a eventual capacidade de combate “revoltoso” continuava reduzida em meios bélicos e em homens.
António Cardana conta, por isso, que foi com “enorme alegria” que viu muitos populares a acercarem-se da EPC – ainda no dia 25 de Abril de 74 -, a saudar os militares. Soube aí que o País tinha sido libertado. “Foi uma das coisas que me marcou”, confessou.
“Houve uma grande festa. Logo no dia 25, às quatro ou cinco da tarde, quando aquilo vingou. A população de Santarém deslocou-se toda para a Escola: gritavam: “Vitória”; “Ganhámos”. Os portões estavam fechados, e nós, nas janelas, lá por cima assistimos a isto… Foi um clima de festa”, recordou.
“Apesar da revolta militar, armada, a Revolução dos Cravos não teria avançado sem a adesão incondicional, vibrante e entusiasta do Povo, de Lisboa, e do resto do País, sublevado quase espontaneamente desde as primeiras horas da manhã. E decisiva continuou a ser, nos dias seguintes, a adesão em crescendo do Povo Português”, afirma.
Respeito e admiração pelo “Camarada Maia”
“Salgueiro Maia era um homem de convicções”, afirma. E essa “perseverança e vontade, levou-a para Lisboa”, na madrugada de 25 de Abril de 1974, quando comandou a coluna que saiu de Santarém e teve um papel decisivo no desenrolar dos acontecimentos em Lisboa, nomeadamente na rendição do presidente do Conselho Marcelo Caetano.
“Salgueiro Maia e o seu núcleo principal de comando eram militares profissionais e tinham experiência de combate em África, o que também ajudou. Mantiveram-se firmes e coesos, mantendo sempre um objectivo operacional central e que foi o de não se derramar sangue”, disse António Cardana.
Salgueiro Maia manteve, ao londo da sua vida uma grande humildade: dizia sempre que só fizera “o que tinha de ser feito”, refere o ex-militar.
“Ele recusou privilégios e honrarias, como ser membro do Conselho da Revolução, adido militar numa embaixada militar ou governador civil de Santarém”, afirmou.
De facto, Maia nunca se rendeu à hierarquia militar, que acabou por o marginalizar, enviando-o para os Açores, primeiramente, e trazendo-o de volta para Santarém, em 1979, para comandar o presídio militar de Santarém. Regressou à EPC em 1984. Cinco anos depois, foi-lhe diagnosticado um cancro que o vitimou aos 47 anos.
Nessa altura, recorda, Salgueiro Maia estava colocado na logística. António Cardana estava já na secção de pessoal: “Ele, um dia, aparece-me lá, e pergunta-me pelo seu processo individual. Vinha com uma carta selada, lacrada, que me pediu para agrafar ao processo. Disse-me: “só tu é que sabes que está aqui isto. É para abrir no dia do meu funeral”, revela ao Correio do Ribatejo.
“No dia em que ele morreu, fui ter com o comandante e entreguei-lhe a carta, respeitando as indicações que ele me tinha dado…. Fui buscar o documento, onde constavam as instruções do que fazer após a sua morte…”, recorda, com emoção.
“Eu sou um pouco mais reservado do que era o Salgueiro Maia”, confessa, contando um outro episódio: “um dia, perto dele falecer – e eu já lhe tinha dito que ele tinha que actualizar os cartões da ADM – Assistência na Doença aos Militares – porque eu era o responsável por isso, alertei-o que os cartões precisavam de estar em conformidade, uma vez que ele ia para Inglaterra a fim de se submeter a tratamentos”, recorda.
Como foi muito em cima da hora, era preciso alguém ir a Lisboa, ainda nesse dia. Eu ofereci-me logo. Ele olhou para mim, muito sério, e questionou: “tu fazes isso?” – “Faço sim”, respondi”. “E eu vi duas lágrimas caírem-lhe dos olhos…”
Filipe Mendes