O Ministério Público (MP) alega, no recurso para a Relação, que a juíza de instrução que devolveu a acusação no processo de homicídio por negligência no acidente que resultou na morte de Sara Carreira “extrapolou as suas funções”.
No recurso para o Tribunal da Relação de Évora, consultado pela Lusa e que se encontra em fase de audição das partes, o Ministério Público pede a revogação do despacho da juíza de instrução criminal da Comarca de Santarém, que, em fevereiro, declarou a nulidade da acusação e determinou a remessa dos autos ao MP para que fosse sanada.
A juíza de instrução Ana Margarida Fernandes apontou, por um lado, o facto de a acusação não especificar o número normativo do crime de homicídio negligente imputado à fadista Cristina Branco e ao namorado de Sara Carreira, o ator Ivo Lucas, salientando a diferença do tipo de culpa e das molduras penais.
O artigo 137.º do Código Penal estabelece no seu número um que “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa” e, no número dois, que, “em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos”.
Por outro lado, a juíza invocou “a falta de promoção do inquérito” quanto ao nexo causal entre a conduta de Paulo Neves, arguido que esteve na origem do primeiro embate (o condutor que seguia na autoestrada a cerca de 30 quilómetros/hora e que, quatro horas depois do acidente, acusou uma taxa de alcoolemia de 1,35 gramas/litro) e a morte da filha do cantor Tony Carreira, como alegado por este e pela mulher, Fernanda Antunes, no pedido de abertura de instrução.
No recurso para a Relação de Évora, o MP afirma que a juíza de instrução declarou a nulidade da acusação sem declarar aberta a instrução requerida pelos pais de Sara Carreira e também por Cristina Branco e Tiago Pacheco (condutores das duas viaturas que tiveram embate direto com o veículo conduzido por Ivo Lucas, o único que não pediu abertura de instrução).
Segundo o MP, a juíza, em vez de apreciar os pedidos dos assistentes, apreciou a acusação “de modo a aferir se esta se adapta” ao requerimento de abertura de instrução.
A procuradora Zita Jorge afirma ainda que o juiz de instrução está impedido de, antes de aberta a instrução, declarar a omissão de pronúncia de factos cuja investigação cabe ao MP e de nulidade insanável decorrida na fase investigatória.
Para a procuradora, a instrução não visa “sindicar a linha investigatória” do MP durante o inquérito, mas sim decidir arquivamento ou envio para julgamento, salientando que nenhum interveniente processual arguiu nulidades, pelo que considera que a juíza “extrapolou as suas funções de juiz de instrução”.
No seu recurso, Zita Jorge conclui que, ainda que a conduta de Paulo Neves tivesse sido outra, “o acidente teria ocorrido”, dada a condução “descuidada e desatenta” de Cristina Branco.
Na acusação deduzida em dezembro de 2021, o MP acusou Ivo Lucas e Cristina Branco por homicídio negligente e por duas contraordenações ao código da estrada (ambas graves no caso da fadista e uma leve e uma grave no do ator), no caso do acidente que vitimou a cantora Sara Carreira, ocorrido em dezembro de 2020 na A1, junto a Santarém.
Foram ainda acusados da prática do crime de condução perigosa outros dois condutores envolvidos no acidente, Paulo Neves (também acusado por três contraordenações ao código da estrada, uma leve, uma grave e uma muito grave) e Tiago Pacheco (também por duas contraordenações, uma leve e uma grave).
Segundo a acusação, o acidente, que ocorreu ao final da tarde do dia 05 de dezembro de 2020, já “noite escura” e com períodos de chuva fraca, teve início, cerca das 18:30, com o embate da viatura conduzida por Cristina Branco no veículo de Paulo Neves, o qual circulava na faixa da direita a entre 28,04 e 32,28 quilómetros/hora, velocidade inferior à mínima permitida por lei (50 Km/h), e depois de ter ingerido bebidas alcoólicas.
A viatura de Cristina Branco embateu, de seguida, na guarda lateral direita, rodando e imobilizando-se na faixa central da A1.
Apesar de ter ligado as luzes indicadoras de perigo, a fadista, que abandonou a viatura dirigindo-se com a filha para o separador central, é acusada de não ter feito a pré-sinalização de perigo, o que esta contesta no seu pedido de abertura de instrução, invocando a impossibilidade de colocar o triângulo, o que, alega, teria sido um ato “suicida”.
O relato do acidente constante da acusação refere que, cerca das 18:49, Ivo Lucas circulava pela faixa central a entre 131,18 e 139,01 quilómetros/hora, velocidade superior à máxima permitida por lei (120 Km/h), não tendo conseguido desviar-se do carro da fadista, no qual embateu com o lado esquerdo, seguindo desgovernado para o separador central e capotando por várias vezes até se imobilizar na faixa da esquerda, com parte da viatura a ocupar a faixa central.
Pelas 18:51, Tiago Pacheco seguia pela via central a entre 146,35 e 155,08 quilómetros/hora, referindo a acusação que não reduziu a velocidade, mesmo apercebendo-se que passava pelo local do acidente, não conseguindo desviar-se da viatura de Ivo Lucas (que ocupava parcialmente aquela faixa), onde este ainda se encontrava, bem como Sara Carreira.
Fonte judicial disse à Lusa que o recurso interposto pelo MP deverá subir ao Tribunal da Relação de Évora provavelmente no final de maio, não sendo expectável que a instrução arranque antes de setembro.