Num ano particularmente difícil, marcado por circunstâncias particulares em consequência da pandemia de Covid-19, D. José Traquina, Bispo de Santarém, não tem dúvidas que o dom da Fé “tem sido uma graça na vida de muitas pessoas”. “Sem Fé, esmorece a esperança e a bondade enfraquece”, diz o responsável eclesiástico nesta entrevista ao Correio do Ribatejo, onde reflete acerca das consequências da pandemia e deixa pistas para o futuro: “Sem esperança não se pode viver”, afirma o também presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade Humana.

Como tem respondido a Diocese a estes meses de pandemia? Como é que Igreja tem procurado enfrentar esses momentos difíceis?
As comunidades cristãs da Diocese de Santarém têm procurado corresponder às regras de segurança recomendadas. Não temos notícia de nenhum surto de contágio em celebrações litúrgicas nas igrejas nem nas actividades de catequese. As dificuldades que surgiram foi na parte da acção social, com as pessoas idosas contagiadas pelo vírus covid-19, nos Lares das Instituições Sociais Paroquiais.
Noutras Dioceses não tem sido diferente, apenas difere a quantificação. Neste contexto, é de sublinhar o esforço e o empenho dos colaboradores e responsáveis directivos das IPSS e Misericórdias no acompanhamento das pessoas que se encontram nos seus espaços.

Como foi vivenciada a fé no meio dessa crise? Sente que o confinamento, com a prática de religião suspensa fisicamente, provocou algum estremecimento nos católicos que viam nas missas e noutras cerimónias religiosas uma certeza ao longo de toda a sua vida?
A avaliação que fazemos é continuada pois as limitações e dificuldades continuam. O que aconteceu foi imprevisível para todos e, portanto, o que os cristãos fizeram e estão a fazer é agir com prudência e responsabilidade. Os Bispos portugueses assumiram uma recomendação aos católicos antes de o Governo se pronunciar. A atitude foi contestada por alguns, mas a verdade é que não temos informação de surtos nas celebrações da Igreja em Portugal.
O que foi pedido foi um esforço aos cristãos que cultivassem a sua Fé a partir da sua própria casa e, quanto possível, em família. Os meios telemáticos permitiram que os padres pudessem transmitir celebrações da missa e outros momentos de oração.
Estamos a fazer, da forma possível, as nossas celebrações com cuidado, mas muitas pessoas idosas, consideradas de maior risco, evitam sair à rua e não voltaram à comunidade cristã por se sentirem ainda inseguras. O que veio ao de cima foi um testemunho muito belo por parte de muitas pessoas que assumiram a sua identidade cristã no meio da dificuldade. Pais, catequistas e padres, nos últimos meses, já promoveram etapas das festas da Catequese e celebrações de Crismas, só que em várias celebrações para serem menos pessoas reunidas. Portanto, o que posso avaliar é que, no meio das limitações e dificuldades, o dom da Fé tem sido uma graça na vida de muitas pessoas. Sem fé, esmorece a esperança e bondade enfraquece.

Como sairá a Igreja Católica desta pandemia do medo? Que frutos os católicos poderão colher quando tudo isso passar? Qual é a sua maior preocupação, como Bispo, neste momento?
O medo não desaparece, tem de ser superado com a prudência e a coragem. Todos temos a aprender com a vida e também com as dificuldades. Provavelmente, na saída da pandemia, teremos uma Igreja mais fragilizada na sua capacidade operacional. Compreende-se, pois a Igreja faz parte da sociedade. No entanto, é de sublinhar as iniciativas e a criatividade que surgiram neste tempo de pandemia, em todas as dimensões: na formação cristã, nas celebrações e no apoio social. Portanto, aprendeu-se a resistir, a sobreviver, a considerar o que é essencial, a ser prudente, enfim, a valorizar mais a pessoa humana.
A minha preocupação como Bispo é a educação e a formação. A Igreja não cumprirá a sua missão apenas com o apoio social que puder promover. A sociedade necessita de pessoas educadas, não apenas com muitos conhecimentos, mas com valores humanos que formam o seu carácter e identificam a sua personalidade. Os cristãos são chamados a dar um testemunho de vida na sociedade em que habitam. Em síntese, preocupa-me que o entretenimento e a exploração da emotividade seja o bastante para a vida de muitas pessoas. Mas temos tempo e, portanto, ninguém está condenado a viver para sempre no pântano das suas dependências. Com valores humanos e cristãos, o sol brilha com outra graça.

Acredita que a humanidade ficará diferente após esta crise mundial ou retiraremos poucos ensinamentos? O impacto da crise pode levar a uma revisão do nosso modo de viver, a uma conversão ecológica e a uma sociedade e economia mais humanas?
A dificuldade da crise mundial já existia antes da pandemia. É hoje admitido por muitos que o desenvolvimento da actividade económica tem de ter em conta o bem comum das pessoas e os recursos naturais. Não se trata de uma opção, trata-se do futuro do planeta Terra. Houve um crescimento da riqueza concentrada em poucas pessoas e o aumento do número de pessoas pobres no mundo que se calcula em oitocentos milhões, pessoas que na sua maioria não tem água potável e, por isso mesmo, estão sujeitas a muitas doenças. Estas situações exigem novas políticas aos governantes das nações.
A pandemia veio ajudar a despertar para o essencial e o essencial são as pessoas e o mundo que habitam. Somos todos convidados a fazer avaliação sobre a forma como usamos os bens naturais e a quantidade que consumimos. Será muito saudável que cuidemos de controlar a ansiedade pela posse de consumir pela cultura da sobriedade e do autodomínio, da solidariedade e da alegria da partilha de bens.

O que estamos, então, a construir nesta pandemia? Os relacionamentos digitais colocam-nos diante de um novo paradigma de relacionamentos, por causa do isolamento social e pelas possibilidades que se vão criando. Aplicando tudo isto ao sector da pastoral, que consequências tem e como é que nos vamos reencontrar depois desta experiência a nível sacramental? Eucaristia, confissão: teremos formas de pertença diferentes?
Não devemos ter medo dos novos meios ou ‘ferramentas’ disponíveis para a comunicação. O que devemos sempre ponderar é a sua utilização. Sem dúvida, foi uma descoberta na pandemia: podemos resolver muitas coisas em reuniões através da videoconferência, poupando em tempo e em custos de deslocações.
Porém, pastoralmente, há realidades que a comunicação digital não consegue resolver: os sinais sacramentais são celebrados e recebidos presencialmente. Desde as suas origens, a Igreja é identificada como uma comunidade de pessoas que se reúne em assembleia. Dois mil anos decorridos, esta experiência tem adaptações, mas não é substituível por outras formas de comunicação.
A questão interessante e que corresponde a uma solução perigosa, é uma pessoa convencer-se que por tanta oferta nos meios de comunicação pode dispensar-se de frequentar a assembleia semanal dos cristãos. Qual é o perigo? Há um duplo prejuízo: o da não participação na densidade espiritual da celebração e a fragilização no sentido de pertença. Ou seja, aquilo que parecia permitir mais liberdade acaba por deixar a pessoa isolada na sua solidão.

Falemos das consequências sociais desta pandemia, que está a levar ao desemprego, à diminuição dos rendimentos familiares. Como perspectiva a sociedade nesse âmbito? Recordando uma expressão sua: “chegou o momento de ir às reservas e partilhá-las”. É necessária uma intervenção mais forte em termos sociais e como avalia o trabalho que a rede nacional Cáritas tem desenvolvido na resposta aos desafios colocados pela pandemia?
Sem dúvida, a pandemia agravou os rendimentos de muitas pessoas e instituições. As situações mais preocupantes, surgiram nos casais sem qualquer rendimento e também com os estrangeiros a viverem entre nós, sobretudo os mais recentes ainda em adaptação e que se viram igualmente confrontados com uma dificuldade inesperada para todos.
Aquilo a que fomos apelando é que se cultive a proximidade e se ajude os que ficam sem rendimentos. Quando falamos de proximidade, significa que se exige verdade; ninguém gosta de ser enganado na ajuda que presta. Também acontece que algumas pessoas têm mais reserva económica do que outras e, por isso, pede-se generosidade para ajudar quem objectivamente vive em dificuldade.
O que aconteceu com a Cáritas Portuguesa, foi exactamente ‘partilhar as reservas’. Este ano não houve o peditório para a Cáritas, nem nas igrejas nem na rua com as habituas ‘latinhas’. Assim, a Cáritas Portuguesa distribuiu pelas Cáritas Diocesanas várias dezenas de milhares de euros para acudir a situações emergentes. É o que tem estado a acontecer.
Mas o cuidado social é abrangente. Registo com agrado o apoio que a Cáritas Diocesana de Santarém está a dar com o ensino da língua portuguesa a estrangeiros. Já começou em Alpiarça, com um grupo de indianos e a experiência vai alargar-se a outras paróquias.
Entretanto, para a Cáritas, a preocupação está em alta. Isto é, prevê-se um agravamento das situações de carência duma parte da população e as capacidades de resposta de apoio são limitadas.

D. José traquina, Bispo de SAntarém

Como olha para as políticas dos Governos em resposta à crise?
A pandemia veio aproximar os governantes dos países e levá-los a concluir que a solução tem de ser encontrada em conjunto. Os governantes que em diversas partes do mundo não atenderam à informação da ciência, fizeram figuras tristes e perderam credibilidade. A pandemia veio revelar que não basta ter convicções e ideias para governar, é necessário verdade e sentido de justiça em tudo e não apenas em crescimento económico.
Não será nada fácil governar um país em situação de pandemia. Assim, no que respeita às decisões tomadas pelo serviços da responsabilidade do Governo de Portugal, houve alguns exageros e permissões não equitativas, mas na sua maioria as decisões foram bem aceites e respeitadas.
No que respeita ao sector social, o Governo esteve atento e ouviu os representantes das instituições sociais. Houve diálogo e aproximação na resposta económica para que as instituições subsistissem. Se não tivesse havido esse esforço, no próximo ano muitas instituições sociais não conseguiriam manter-se no serviço que prestam à sociedade.

Como é que a comunidade vai experienciar o Natal?
Nas igrejas vamos manter os cuidados previstos no número de participantes, de modo a que não haja ajuntamentos e as pessoas estejam seguras e sossegadas. O Menino do Presépio será contemplado à distância e não se promoverá outras manifestações comunitárias que ponham em causa a defesa das pessoas.
A preocupação reside no ambiente familiar. Espera-se que haja prudência e que a celebração do Natal não seja motivo para agravar a situação do número de pessoas infectadas.
Entretanto, acontecerão muitas outras experiências da vivência do Natal. Muitas pessoas estarão a trabalhar, no Hospital, nos Lares de Idosos, nos Bombeiros, nas Instituições de Segurança, etc. Estão a cuidar das pessoas e foi também por isso que o Menino de Belém nasceu. Portanto, todas as pessoas que estão a trabalhar são convidadas a colocar aí a sua alegria de Natal, lembrando que também os pastores de Belém estavam a guardar os seus rebanhos e foi a eles que foi anunciada a alegria do Nascimento do Menino.

Que mensagem quer deixar nesta quadra?
Algumas pessoas sofrem com o Natal, não se sentem felizes e pensam até que nunca chegarão a ser felizes. Porém, o Natal é um sinal com mensagem de esperança. Ninguém está fora do alcance do Amor de Deus, manifestado na Luz daquela estrela que pessoas de longe seguirem até chegarem ao Menino.
Sem esperança não se pode viver. Para as muitas preocupações sociais, recordemos que Jesus nasceu no momento complicado da história do seu povo de Israel. Todavia, demonstrou que a esperança é possível e foi a partir da valorização e atenção a cada pessoa que lhes suscitou a alegria e a esperança.
Desejo que se cuide do bom relacionamento na casa onde se reside; é o tesouro que permite a felicidade de um casal e motiva a boa vontade e colaboração. Também as crianças e jovens podem e devem dar o seu contributo de esperança, inventando gestos e sinais provocadores de alegria.
O Natal pede a cada pessoa uma decisão: assumir-se como um dom e um bem para os outros; é assim que se pode ser feliz.


D. José Traquina nasceu em Évora de Alcobaça a 21 de janeiro de 1954. Foi ordenado Presbítero a 30 de Junho de 1985, nomeado para Bispo Auxiliar de Lisboa a 17 de Abril de 2014 e ordenado Bispo a 1 de Julho de 2014.
Mestre em Teologia Pastoral pela Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, esteve vários anos ligado à preparação dos candidatos ao sacerdócio, tendo feito parte da equipa formadora do Seminário de Almada e do Pré-Seminário de Lisboa.
Foi responsável máximo da Vigararia Cadaval-Bombarral, em três mandatos diferentes (1993, 1996 e 2001), em 2002 integrou o Secretariado de Acção Pastoral do Patriarcado de Lisboa e em 2003 foi nomeado Assistente do Núcleo do Oeste do Corpo Nacional de Escutas e, mais tarde, Cónego da Sé Patriarcal de Lisboa.
Em 2007, assumiu a missão pastoral à frente da comunidade católica de Nossa Senhora do Amparo, em Benfica, freguesia onde se encontra a nova sede da Conferência Episcopal. Em 2011, D. José Augusto Traquina foi designado Vigário da Vara da Vigararia III da cidade de Lisboa, cargo que acumulou com o trabalho de director espiritual do Seminário Maior de Cristo Rei do Olivais e com a coordenação do Conselho Presbiteral de Lisboa.
Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade Humana, D. José Traquina foi nomeado Bispo de Santarém pelo Papa Francisco a 7 de Outubro de 2017.

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