Hábito muito antigo, que ainda subsiste nos nossos dias, é o de avaliar o carácter de uma pessoa pelos bens de que é detentor, sendo que os mais pobres eram, em regra, conotados como pessoas de baixa condição e de pouco préstimo, enquanto aos ricos se reconhecia, ainda que muitas vezes de forma imerecida, atributos morais de elevada distinção. Diz-me o que tens, dir-te-ei quem és!

Também o povo, na sua provecta sapiência, recorria muitas vezes à situação da pobreza para esboçar a sua crítica social, denunciadora de uma realidade muito difícil e constrangedora. Crítica velada, claro está, pois, os tempos não aconselhavam grandes franquezas que visassem os mais poderosos do lugar, que não apreciavam sobremaneira ver-se retratados neste tipo de sátira.

Esta concepção peca por generalizar o que deve ser apreciado no seu respectivo contexto, pois, há pessoas generosas e solidárias que são muito abastadas, e há pessoas paupérrimas que, como então se dizia, nem tinham onde cair mortas, e que, contudo, nada partilham com os que vivem nas mesmas circunstâncias. Lá nos avisa uma vez mais o nosso sábio povo – Não peças a quem pediu, nem sirvas a quem serviu!

Alves Redol incluiu no “Cancioneiro do Ribatejo” algumas quadras que versavam o tema da pobreza, o que, aliás, nem admira, posto que esta era uma realidade muito íntima da população rural. Esta quadra, recolhida em Vila Franca de Xira, dá-nos prova do sentimento que os nossos antepassados tinham a este respeito: “Quem é pobre, sempre é pobre, / Quem é pobre nada tem; / Quem é rico sempre é nobre, / E às vezes não é ninguém.” De facto, não é o dinheiro que torna as pessoas mais importantes do que as demais, mas, sim o seu carácter e os seus sentimentos. Daí que a “nobreza” não tenha de estar associada nem ao estatuto social, nem ao património de que se é detentor.

Também os textos bíblicos abordam esta questão, nomeadamente naquela expressão que foi praticamente convertida em adágio popular, segundo a qual “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mateus 19:22-24). Não é consensual a interpretação desta expressão, pois, muitos pretendem adequá-la à realidade histórica de Jerusalém, enquanto outros entendem que, apesar de hiperbólica, esta expressão significa o que literalmente se pode extrair do seu conteúdo.
De igual modo, São Marcos (12:41-44) abordou eloquentemente o tema na parábola da viúva pobre. Segundo este texto bíblico, Jesus estando sentado próximo de um lugar onde eram deixadas as esmolas, observava a multidão que colocava o dinheiro nas caixas de oferendas. Muitos ricos deitavam ali grandes quantias. Então, uma viúva pobre chegou-se e colocou duas pequeninas moedas de cobre, de muito pouco valor. Chamando a Si os seus discípulos, Jesus declarou: “Afirmo-lhes que esta viúva pobre colocou na caixa de ofertas mais do que todos os outros. Todos deram do que lhes sobrava; mas ela, na sua pobreza, deu tudo o que possuía”.

O dramaturgo brasileiro Joracy Camargo (1898 / 1973) escreveu a peça teatral “Deus lhe Pague”1 , que registou um dos maiores êxitos da dramaturgia do Brasil. “Deus lhe Pague” é a história de Juca, um mendigo que enriqueceu pedindo esmola à porta de uma igreja, agradecendo sempre a dádiva com a expressão “Deus lhe pague”. Dessa sua humilde situação, o protagonista observava a sociedade, satirizando-a, pelo que esta peça constitui uma excelente caracterização da sociedade brasileira de então. Juca fora um operário qualificado, tendo até inventado uma máquina que teria grande impacto na sua actividade. Porém, o patrão conseguiu, por artes e manhas, que a mulher de Juca lhe mostrasse o projecto do invento, e apropriou-se dele. A mulher enlouqueceu e Juca decidiu abandonar o trabalho, passando a dedicar-se à mendicidade, tendo logrado enriquecer com o produto das esmolas.

Porém, apesar de ser muito rico, Juca tinha de continuar a vestir-se andrajosamente e a manter publicamente a postura de mendigo, para não desperdiçar o seu único meio de vida. Cruzando-se com um outro mendigo, Juca contou-lhe a sua história e ensinou-lhe a maneira de enriquecer, algo que o outro mendigo supunha ser impossível. O diálogo entre ambos é sublime. Juca advogava que a sociedade precisava dos mendigos, algo que era incompreensível para o outro mendigo, mas Juca, eloquente, explicava-lhe como “Eles precisam muito mais de nós, do que nós deles. O mendigo é, neste momento, uma necessidade social. Quando eles dizem: “Quem dá aos pobres, empresta a Deus”, confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a Deus… Não há generosidade na esmola, há interesse (…) Não há gratidão. Só agradece a Deus quem tem medo de perder a felicidade. Quem dá esmola pensa que está comprando a felicidade, e os mendigos, para eles, são os únicos vendedores desse bem supremo.”

E o mendigo Juca, rematou com esta judiciosa sentença – “A sociedade é muito defeituosa, meu velho. Pela lógica, o mendigo deveria ser sempre pobre. Pelo menos, enquanto fosse mendigo. Entretanto, pobres, realmente pobres, são os ricos. Pobres de espírito, pobres de tranquilidade, de fraternidade, e, às vezes, até de dinheiro! (…) A sabedoria humana está muito espalhada. Hoje, todos sabem tudo. Não há mais segredos, nem mistérios. O último dos ignorantes julga-se capaz de salvar a humanidade. Ninguém mais aprende. Todos ensinam!”.

1 Joracy Camargo, Lisboa, 1949, 2.ª edição, Colecção “Livros do Brasil”.

Etnografia & Folclore – Ludgero Mendes

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