Quem se lembra ainda dos tempos em que o rabisco das colheitas agrícolas contribuía de forma relevante para garantia da sobrevivência das numerosas famílias, especialmente no mundo rural?
Apesar de muitas famílias ribatejanas, sobretudo na região do Bairro, serem detentoras de uma pequena courela à volta da sua modesta casa de habitação, onde cultivavam alguns produtos que haveriam de ajudar a granjear o sustento da prole – como era o caso das batatas, das cebolas, alhos, feijão, que se comia em verde e depois se secava o resto, tomate e pepino, favas, milho e grão de bico, algumas árvores de fruta, uma ou outra oliveira e algumas cepas – a quantidade da produção era sempre escassa, até porque, em regra, a família era afilharada.
O trabalho nos campos, quando se conseguia tomar patrão na “praça das jornas”, era pago a preço de exploração – muitas horas de labuta, de sol a sol, e jorna de miséria – e em alguns casos, até, parte do valor combinado era pago em espécie, por um preço estabelecido pelo lavrador, que, contudo, quando o camponês o entregava para abater na conta do merceeiro era desvalorizado, pelo que o pobre trabalhador rural era roubado duas vezes, a primeira pelo “patrão” e logo em seguida pelo merceeiro.
Porém, era comer e calar, pois, se não, na próxima vez nem tinha patrão que o contratasse, nem o merceeiro lhe fiava o que quer que fosse.
Tempo de miséria e de inqualificável exploração humana! É claro que havia algumas honrosas excepções, mas estas eram mesmo muito invulgares, pois, a regra era esmagadoramente aplicada. Em regiões ribeirinhas do Tejo ou dos seus afluentes, as invernias ainda eram mais difíceis, na medida em que o campo era inundado diversas vezes por ano e os cavadores só podiam começar a sua faina quando as terras estivessem um pouco mais secas, para aguentarem as charruas e as enxadas.
Nesse tempo, já longínquo, felizmente, o tempo que não era gasto na dura faina agrícola, era utilizado na recolha de lenha para o lume, de tojo e pasto para o gado, e no rabisco daquilo que o lavrador, no afã de colher mais cedo e mais rápido, deixava nas searas. Compreensivelmente, os camponeses só podiam ir ao rabisco no fim de o dono das terras ter dado por completo o trabalho das colheitas, mas as mulheres, e até as crianças, já iam deitando o olho para ver por onde é que valeria a pena começar o rabisco, para não serem ultrapassados por outros, pois, neste caso, “eram muitos pobres a bater à mesma porta, pelo que alguns ficariam sem esmola”…
Depressa e bem não há quem, pelo que na apanha da azeitona ou do milho, ou nas vindimas havia sempre alguns bagos e cachos que ficavam escondidos entre a folhagem, e sendo depois “rabiscados” permitiam ao povo entregar alguma azeitona no lagar à troca de azeite ou até a fazer alguma aguapé, para acompanhar as magras refeições e dar algum alento em horas de maior tristeza.
Conta-se que em ano de magra colheita, o dono de um olival atrasou a apanha da azeitona na esperança de que a produção pudesse melhorar um pouco, mas a coisa não estava fácil. Como é lógico, nestes anos as sobras para o rabisco ainda eram em menor quantidade, pelo que os camponeses também passariam ainda pior.
Num dia de inverno, escuro e frio, lá avançou um camponês para apanhar alguma azeitona caída no chão e outra que ainda estava nos ramos, empresa em que foi surpreendido pelo dono do olival, que lhe perguntou o que é que ele ali andava a fazer. Que andava ao rabisco, lhe respondeu, a medo, o camponês, objectando-lhe, assim, o lavrador:
– “Ao rabisco, não senhor. Ao ladrisco, isso sim, porque o dono da terra sou eu e ainda não colhi a azeitona!”
Lá se desculpou o pobre camponês, argumentando em sua defesa que lhe parecia que a apanha já tivesse sido feita, pois, havia tão pouca azeitona nas oliveiras… “Pois, há muito pouca, de facto, mas desta maneira, ainda eu fico com menos, não basta já o ano ter corrido tão mal, como ainda por riba, aqui virem fazer o rabisco antes do tempo…” respondeu o lavrador.
Naturalmente, o rabisco daquele ano ficou por ali, posto que o lavrador montou guarda para evitar novas arremetidas no seu olival. Porque, apesar de tudo, era uma boa alma, o lavrador deixou o camponês levar a azeitona que já havia apanhado – o que era pouco frequente nestas circunstâncias – e lá lhe recomendou que não voltasse a fazer o mesmo. Não o faria ali, decerto, mas teria de o tentar noutro olival, pois era preciso pôr alguma sopa em cima da mesa para matar a fome aos filhos.
Note-se, porém que ao rabisco não está associada nenhuma conotação de prática de um acto de furto, mas sim de dar aproveitamento ao que é excedente das culturas e que os proprietários não perdiam tempo a recolher, dada a quantidade produzida.
Também para alimentar os animais que se criavam todos os anos – umas galinhas, uns coelhos e o porco – lá se ia rabiscando erva, milho, jarros, tomate, maçãs, abóboras ou melão, pois, só assim era possível sobreviver.
Este era um tempo de grande dificuldade, em que, a bem dizer, não se vivia, mas, apenas, se ia sobrevivendo, como Deus permitia e os homens deixavam. Era um tempo de exploração, que só foi aligeirado com a introdução da mecanização na agricultura, que dispensou milhares de braços de trabalho, recrutados, depois, para as fábricas que começavam a aparecer e para a construção civil, que teve por esta época um razoável incremento. Outros, claro, emigraram, procurando melhor futuro em terras desconhecidas e, para si, inóspitas, pois, para além de tudo o mais, não sabiam ler nem escrever, e, obviamente, não sabiam falar nem inglês, nem francês, nem alemão.
Nos nossos dias, infelizmente, ainda há “patrões” que não têm qualquer escrúpulo em explorar os seus semelhantes, que das suas longínquas terras demandam o nosso país em busca de cumprir o sonho de poder alimentar as respectivas famílias e de lhes proporcionarem uma vida com menos escolhos. Na agricultura ou na construção civil são explorados e ofendidos, ao serem tratados pior do que animais, sem o mínimo de respeito pela sua condição humana. Tal é inadmissível e condenável.
Mas, outrora era em tempo de S. Miguel (29 de Setembro) que os lavradores faziam contas com os seus criados, ajustados anualmente por esta data, sendo que, assim, o S. Miguel era data de contratação ou de despedimento. Nestes casos, os trabalhadores rurais ainda podiam ter alguma tranquilidade, posto que apesar de a féria nunca ser muito avantajada, havia a certeza de que aquela estava certa, enquanto os trabalhadores à jorna, ou jornaleiros, como se lhes chamava em algumas regiões, nunca sabiam quando arranjavam patrão, o que muito dependia também das condições climatéricas.
Do que não restam dúvidas é que em qualquer dos casos todos eram explorados até ao tutano, isto porque mesmo os trabalhadores ajustados às casas agrícolas nunca mais eram senhores de si, nem do seu tempo, tendo de estar sempre às ordens do feitor ou do patrão.
Lá nos ensina o provérbio, segundo o qual “Quem se aluga no S. Miguel, não se senta quando quer.” Grande verdade!