“Vale de Ossos”, nem de propósito, assim se chamava a propriedade adquirida, décadas atrás, pelo município de Santarém para albergar o novo cemitério da cidade que iria complementar o velhinho congénere dos Capuchos, já então muito lotado.

O projecto foi cometido ao Professor Arquitecto Paisagista Francisco Caldeira Cabral, que estudara a fundo a organização cemiterial em Portugal. Era um bom (e bonito) projecto, como facilmente se constatava nomeadamente pela maqueta que o integrava e que deve andar, algures, pelos depósitos do município. Entretanto, o projecto foi abandonado e o “Vale de Ossos”, de local de recolhimento e de repouso final, que não chegou a ser, veio a acolher a vivacidade própria das piscinas municipais ali construídas.

Entretanto, em Lisboa, o “POCL, Plano de Organização Cemiterial de Lisboa”, elaborado por uma equipa pluridisciplinar que integrei na qualidade de arquitecto, fez o levantamento da preocupante situação existente em todos os cemitérios da cidade. As acções desenvolvidas a partir do “POCL”, levaram a uma revisão profunda das práticas cemiteriais, à recuperação de edifícios existentes e à construção de outros em falta, ao estabelecimento de normas tendentes à recuperação/ reapropriação da enorme quantidade de sepulturas abandonadas, à mecanização dos enterramentos, à formação da totalidade dos funcionários, dos coveiros aos directores das várias unidades e, por último, à construção do novo cemitério de Carnide.

Ao longo da minha actividade profissional, tenho tido a sorte de estudar e projectar uma apreciável diversidade de ambientes arquitectónicos, sendo que, de entre os demais, sobressai o projecto do novo cemitério de Carnide, pela especificidade programática, pelo desenho urbano (com o paisagista Júlio Moreira) e pela arquitectura, designadamente dos edifícios (aparentemente gémeos) da Administração e das Salas Mortuárias (construídos no âmbito da 1ª fase) e do Crematório e das Arcadas, a construir na 2ª fase.

As Salas Mortuárias mereceram-me especial atenção, marcado que fiquei pelo que vi em vários cemitérios europeus que então visitei, de construção mais recente. Nelas deve haver o máximo de condições de tranquilidade e de recolhimento, condições essas que obrigam a uma articulação de espaços e não à concentração de tudo numa mesma sala, como é corrente em Portugal. O espaço onde se coloca o caixão a velar, não tem que ser fechado e soturno, sem janelas. Antes deve abrir para um exterior tranquilo, natural, tratado com plantas, com fonte de água a cantar, por pequeno que seja. Ou para uma paisagem vasta, desde que calma. As condolências não têm que ser dadas no espaço onde se faz a vela. Os familiares têm que poder recolher-se num espaço próprio, mais intimista.

Naquela época existia um único crematório em Portugal, sito no cemitério do Alto de S. João, em Lisboa, crematório esse muito pouco utilizado. Com uma população maioritáriamente católica, a cremação não fazia parte da tradição nacional. Entretanto a vida foi andando e a morte foi alterando as práticas. A igreja católica, embora sem incentivar a cremação, deixou de se lhe opôr. Começaram a surgir crematórios, por aqui e por ali, sendo certo que, dada a aceitação actual da cremação, a meu ver mais que justificada, o crematório deve ser uma das peças de equipamento de cada capital de distrito.

Decidido que foi manter a prática cemiterial da cidade de Santarém no cemitério dos Capuchos, adoptando para tal, as tecnologias mais recentes, faz todo o sentido construir ali, o Crematório e as Salas Mortuárias. Para tanto há que fazer-lhe um acesso capaz e que alargar, a sério, o actual espaço de estacionamento.

As velhas zonas das cidades, quando não têm estado nem qualidade que justifique a sua preservação, devem ser reaproveitadas, por mais razão quando houver peças de equipamento público que delas necessitem para se instalar. Sem que tal retire aos poderes públicos a obrigação de proceder aos necessários e condignos realojamentos. Tal é o caso das áreas envolventes do largo do cemitério dos Capuchos. De uma cajadada já não se matam 2, muito menos 4 coelhos, que agora é pecado referir tal coisa, mas pode criar-se o Estacionamento necessário ao cemitério, construirem-se as Salas Mortuárias, para mais com uma vista soberba, Reabilitar-se uma degradada área da cidade e dar bem melhores Condições de Habitação aos poucos que ainda ali vivem.

Carlos Guedes de Amorim

Leia também...

Investigar, ensinar e gerir: uma vida com (a) História

Maria de Fátima Reis – Professora Associada com Agregação da Faculdade de…

Surfar a espuma dos dias … Por Ricardo Segurado

Tal como tudo fazia prever e os diversos indicadores indiciavam, julho tem…

É o que temos…

Inicio de 2023. Subida de preços e do custo de vida. Do…

‘O dia do pai…’, por Ricardo Segurado

Comemorou-se no passado sábado, dia 19 de março, o dia de São…