Por esquecimento, quero crer que, apenas, por esquecimento, não se assinalaram no passado domingo, dia 13 de Janeiro, como mandariam os preceitos da justiça e da gratidão, os cento e cinquenta anos sobre a data do infausto falecimento do Padre Francisco Nunes da Silva, vulgo Padre Chiquito.
Nascido no seio de uma família modesta em Alfange, em 1790, sendo filho do sapateiro Ventura da Silva e de Rita Joaquina, o Padre Chiquito foi um sacerdote digno, puro e virtuoso, homem bondoso e cidadão benemérito e grande amigo do operariado.
Estudou no Seminário Patriarcal de Santarém e após a guerra civil exerceu funções na Paróquia de S. Julião, do Pereiro, uma das treze paróquias em que Santarém então estava dividida. Em 1834 o Padre Chiquito substituiu provisoriamente o prior desta freguesia, assumindo a efectividade, após a morte deste, ocorrida em 1844.Alguns anos volvidos, em 1851, a Paróquia de S. Julião foi integrada na de Marvila, que, assim,passou a ser a maior freguesia do velho burgo escalabitano. Porém, as antigas igrejas de S. Julião e de S. Lourenço, situadas no Pereiro, continuaram a merecer a sua assistência religiosa.
No ano de 1854 foi fundado em Santarém o Montepio Artístico de Nossa Senhora da Conceição, associação de socorros mútuos constituída sobretudo por operários e artífices que, nos termos estatutários, assumiam a sua direcção. O Padre Chiquito, homem bom e sensível às dificuldades por que passavam os operários, especialmente quando por força da idade ou da doença já não podiam ganhar o seu sustento, sujeitando-se a muitas privações, aderiu ao ideal mutualista e contemplou o Montepio no seu legado, fazendo constar no seu testamento que o rendimento dos bens de que era possuidor se destinava a “melhorar a sorte dos pobres, contemplando os operários mecânicos de Santarém que, sendo assíduos ao trabalho, tivessem 65 anos e fossem necessitados, dotando o Asilo de Santo António com o remanescente, depois de abonar-se cada um daqueles com 240 réis”.
Deste modo o Padre Francisco Nunes da Silva evidenciou-se como uma pessoa muito à frente do seu tempo, pois, na prática, antecipou a acção social que viria a ser consagrada apenas muitas décadas mais tarde pelo Estado português.
O Padre Chiquito nascera no seio de uma família pobre, porém, logrou constituir uma avultada fortuna resultante das doações que lhe fizeram pessoas abastadas de Santarém, no reconhecimento da sua bondade para com as pessoas mais carenciadas, preferindo-o às instituições religiosas, que, então, viviam tempos de crise e de muita instabilidade, na acertada convicção de que o Padre Chiquito saberia aplicar com justiça e bom critério estes bens no apoio a quem dele carecesse.
A 13 de Janeiro de 1869 faleceu o Padre Chiquito, o que causou a mais profunda consternação em Santarém, pelo carinho e sentimento de gratidão que todos nutriam por tão carismática personalidade e o cortejo fúnebre até ao Cemitério dos Capuchos foi a mais eloquente expressão da profunda admiração que lhe era generalizadamente devotada. A 21 de Outubro de 1874 procedeu-se à trasladação dos seus restos mortais para o mausoléu edificado conforme as disposições testamentárias.
Há cerca de cem anos, que se cumprirão no próximo dia 1º de Maio,por iniciativa da Associação Fraternidade Operária, procedeu-se à inauguração do busto erigido em sua memória e homenagem no local onde antes existira a Igreja do Salvador, muito danificada pelos sismos de 1755 e de 1909, e que, entretanto, tinha sido demolida. À inauguração do monumento, da autoria do escultor Rodrigo de Castro, associou-se uma multidão de gente de todas as “classes” sociais e o Governo de então[i] fez-se representar pelo Ministro do Trabalho, Augusto Dias da Silva. Realizou-se um cortejo com carros alegóricos até ao mausoléu onde jazem os seus restos mortais e as homenagens revestiram-se de elevada dignidade, facto realçado pela Ilustração Portuguesa, que elogiou a forma como Santarém soube prestar homenagem a um dos seus mais dilectos filhos e que tanto fizera pelos mais desvalidos da sorte. Como estão diferentes os tempos de agora…
Durante o “Estado Novo” as homenagens ao Padre Chiquito eram proibidas, pelo que os operários se limitavam a depor clandestinamente algumas flores no monumento ou no mausoléu. A Sociedade Recreativa Operária evoca anualmente esta grande figura no dia 1º de Maio, no âmbito da comemoração do seu aniversário, e há dez anos atrás, em parceria com o Município de Santarém, levou a efeito um programa de homenagem a tão relevante figura escalabitana.
Lamentavelmente,
quando se consagra o 150.º aniversário sobre a data do seu falecimento, ninguém
se lembrou de tão ilustre Cidadão escalabitano. Não podendo esta modesta
evocação constituir a homenagem que lhe é devida, queremos, ao menos,
resgatá-lo do tão injusto esquecimento e de tão lamentável atitude de
ingratidão. LM
[i]Este foi o 20.º Governo da Primeira República, um dos mais curtos da história portuguesa. Foi constituído a 30 de Março de 1919, sob a presidência de Domingos Pereira, tendo sido dissolvido em 29 de Junho do mesmo ano. O Ministro do Trabalho, Augusto Dias da Silva, exerceu as suas funções, apenas, entre o dia 30 de Março e o dia 6 de Maio – 38 dias – tendo sido substituído no cargo por Jorge de Vasconcelos Nunes, que exerceu funções apenas por cinquenta e três dias.