Longe vão os tempos em que se dizia que o vinho dava de comer a um milhão de portugueses, e outras são, na actualidade, as circunstâncias sociais que ditaram outros rumos à produção vinícola, por um lado, e, sobretudo, às circunstâncias que estavam subjacentes a esta afirmação.
Nos dias que correm a realidade é outra e de pouco nos vale desperdiçarmos muito tempo a reflectir sobre essas expressões que tiveram a sua época, sendo preferível tentarmos compreender o caminho que nos trouxe à situação em que nos encontramos. A produção de vinho mudou radicalmente num tempo em que o consumo está muito condicionado pelos preços que este precioso néctar atingiu, assim como pela legislação que limita a sua ingestão, especialmente para os condutores de viaturas automóveis. Os pressupostos são bem distintos dos de outrora.
O Alentejo que antigamente era terra de pão, pelo menos na propaganda do anterior regime, é agora território privilegiado de produção de alguns dos mais apreciados vinhos, que por via dos preços que alcançam deixaram de ser a bebida dos mais pobres.
Longe vão os tempos do copo de três, acessível a todas as bolsas, mesmo às mais magras, quando o vinho servia, tantas vezes, para afogar as mágoas de uma vida difícil e sofrida. Os patrões davam em vinho o que escasseava em jorna, e também por isso as famílias camponesas passavam tantas privações.
Agora, que se iniciou um novo ciclo no plantio da vinha, com castas mais nobres, e se tem investido na produção à base de melhor qualidade, o vinho é bebida de fidalgo ou de burguês a querer botar figura, pois, chegar a um restaurante e escolher a marca do vinho confere um certo estatuto social. Quem diria que também o vinho, como a sardinha ou o bacalhau, viraria bem de consumo destinado aos mais endinheirados!
Bem sabemos que a tradição já não é o que era. Porém, nunca deixaremos de gostar do vinho que é produzido no nosso país, mesmo com os novos processos de cultura e de vinificação, em conformidade com as exigências comunitárias. Contudo, respeitando o sacrifício dos nossos antepassados, não queremos deixar de evocar o povo que rebentava nas cavas, nas podas, nas curas e nas vindimas em jornadas de sol a sol, e nos lagares, em tempo da pisa, pela noite dentro. Povo simples, bom, abnegado, sério, honrado e trabalhador, a quem deveremos render sempre as nossas homenagens.
Para além do adagiário popular que anda associado a esta cultura, há um vasto conjunto de aspectos relacionados com a vivência do povo, que, nesta medida, interessam ao folclore e à etnografia da respectiva região. A mais frequente referência ao vinho anda intimamente ligada a São Martinho, pese embora que, segundo conste, o piedoso santo não fosse um consumidor inveterado de tão precioso néctar, pois, como é sabido, a sua santidade resultou da bondade para com os mais desvalidos da sorte, nomeadamente com um indigente com quem repartiu a sua luxuosa capa, cortando-a ao meio com a espada, para o agasalhar do frio, e, segundo a tradição, por força desta atitude, se espera sempre pelo verão de São Martinho, para protecção dos que têm pouca roupa e outras maiores necessidades.
Mas neste tempo frio, de Outono, os vinhos já estarão cozidos, como se diz em gíria popular, pelo que é mister fazer a prova, para ver como está de gosto, de acidez e de grau:
Pelo São Martinho, mata o teu porco e prova o teu vinho!
Este é apenas um entre dezenas ou centenas de outros rifões que estão associados à produção e ao consumo do vinho, mas que reflectem, igualmente, a mundivisão das gentes simples do nosso povo, para quem a criação de um porco por ano era fundamental para proporcionar o sustento da família.
Matava-se o porco quando o frio começava a apertar, por razões de mais fácil conservação da carne nas salgadeiras, e aproveitava-se o calor das chaminés para defumar os enchidos, que haveriam de servir de conduto durante alguns meses. Voltarei um dia destas a falar da importância do porco na alimentação popular. Mas não resisto, sem querer ser fastidioso, a citar outro bem eloquente rifão:
O vinho dá voz a mudos, vista a cegos e ouvido a surdos!
Não restam dúvidas de que também aqui o povo afirma a sua imensa sabedoria ao sintetizar tão adequadamente os efeitos da ingestão excessiva do vinho, pois, quando uma pessoa está com um grão na asa, torna-se mais falador, e quase sempre teima que viu ou que ouviu algo que não aconteceu, revelando, assim, tornar-se um pouco desconfiado e até quezilento.
Mas o vinho está presente nas mais diversas circunstâncias da vida de um camponês e da sua família. Antigamente era frequente entre a população rural “matar-se o bicho” com as “sopas de cavalo cansado”, que mais não eram do que pedaços de pão, ensopados em vinho quente e adoçado com um pouco de açúcar louro.
Nas regiões agrícolas, nomeadamente no nosso Ribatejo, a “Praça das Jornas” era um tempo e um espaço onde afluíam os camponeses que buscavam trabalho e os pequenos proprietários, ou os capatazes das casas agrícolas mais abastadas, que necessitavam de contratar alguns trabalhadores para executarem determinada faina. Em algumas localidades referiam-se-lhe como a “praça dos homens” – ou a “praça das mulheres”, que também as havia na nossa região.
Num tempo anterior à mecanização da agricultura tornava-se necessário reforçar a oferta de mão de obra com a contratação de ranchos de fora para alguns trabalhos que deviam ser efectuados no mais curto espaço de tempo, como eram os casos das mondas, das ceifas, das vindimas e da apanha da azeitona, porém, na parte restante do ano a mão de obra local era suficiente, e às vezes até excessiva.
Neste casos patrões e jornaleiros iam à “praça” para satisfazer as respectivas necessidades. Acertado o valor da jorna, camponês e “novo patrão” selavam o acordo com a ingestão de um copo de vinho, a que chamavam a molhadura. Era o selo do contrato! Bebido o vinho já nenhuma das partes podia voltar com a palavra atrás. Quando algum proprietário estava mais apertado ainda tentava aliciar os trabalhadores de que necessitava com uma jorna maior e com um garrafão de pinga, mas os trabalhadores respeitavam o compromisso assumido e logo lhes davam nota de que já “tinham bebido o vinho”. Ou seja, a palavra dada estava selada como se se tratasse de uma escritura.
Quando um rapazola ganhava pela primeira vez a “jorna” igual à de um homem adulto, tinha de “pagar a patente”, o que significava que teria de pagar aos seus companheiros de jornada uma rodada de vinho, assinalando, assim, a passagem a um estatuto mais bem remunerado. Enfim, sinais dos tempos. Como estamos, felizmente, distantes de uma realidade que marcou tantas gerações de pessoas que sofreram as passas do Algarve, mas hoje padecemos de outros males e vicissitudes. E muitos pobres, mesmo sem evocarem o dia de São Martinho, ainda continuam a carpir as suas mágoas e a afogar os seus desgostos com o vinho. Nem que seja do cartucho…
