Num ano marcado pela despedida da presidência da Câmara de Almeirim e pela candidatura à liderança do município de Santarém, Pedro Ribeiro recebeu o Correio do Ribatejo para uma entrevista de fundo em vésperas das Festas da Cidade de 2025. Com o olhar dividido entre a obra feita e os desafios do futuro, o autarca reflecte sobre os três mandatos que transformaram Almeirim, os investimentos estruturantes realizados, o combate à desigualdade e a forma como encara o poder local: com proximidade, persistência e sentido de justiça social.

Sem rodeios, critica a inércia do Estado central, defende a regionalização como urgência democrática, e denuncia os riscos do crescimento da extrema-direita na Europa. Pelo meio, evoca a herança familiar e as origens humildes que o formaram, reafirmando o compromisso com quem menos tem: “Não quero que os mais ricos sejam menos ricos, quero é que os mais pobres sejam mais ricos”.

Entre memórias, projectos e convicções, Pedro Ribeiro deixa um retrato raro de quem sai do cargo com consciência tranquila – mas com vontade renovada de continuar ao serviço.

Este é o último ano em que inaugura as Festas da Cidade enquanto Presidente da Câmara de Almeirim. Que simbolismo pessoal tem esta edição de 2025?

Para quem acompanha as Festas há muitos anos, como é o meu caso, há naturalmente alguma nostalgia ao saber que, no próximo ano, já não estarei nestas funções. Mas encaro esta fase como o fim de um ciclo. Continuarei a participar, não como presidente da Câmara, mas como dirigente associativo, função que já exercia antes de ser presidente e que pretendo manter.

As Festas vivem de tradição, cultura, cidadania activa. Considera que são também um retrato do que pretendeu deixar ao longo dos seus mandatos?

Sim. Nunca fomos de fazer festas com artistas que custam dezenas de milhares de euros. Não por falta de qualidade, mas porque entendemos que gastar 50 ou 100 mil euros numa noite é um exagero. Há artistas que cobram 30, 40, 60 ou mesmo 80 mil euros. E ainda acresce o IVA, que para as Câmaras é um custo real. Preferimos investir em condições para as associações locais participarem, recuperar as picarias, criar espaços para os mais jovens como as Midnight Sessions. Fazemos tudo com equilíbrio, sem excessos.

Diria que estas festas são também um reflexo da sua relação de proximidade com a população?

Claramente. São festas feitas com “prata da casa”: colaboradores do município que montam e preparam os espaços, associações que dinamizam, pessoas que se envolvem. Dá muito trabalho, mas permite-nos poupar recursos que usamos noutros sectores. Mais do que um evento, estas Festas mostram a forma como entendemos o poder local: próximo das pessoas, feito com elas e para elas.

Que projectos considera verdadeiramente estruturantes e transformadores nos seus mandatos em Almeirim? Se tivesse de eleger um ou dois, quais destacaria?

Eu acho que há áreas muito marcantes. Desde logo, as questões da mobilidade, com a circular urbana, que ainda não conseguimos concluir, mas cujo projecto está feito e pronto a avançar. Estamos apenas a aguardar autorizações e a formalização da aquisição de terrenos, nomeadamente junto da Compal. São processos que envolvem múltiplas matrizes prediais, e isso demora, mas estão em marcha.

Depois, destaco claramente o trabalho feito nas áreas da saúde e da educação. Fizemos a requalificação de praticamente todos os espaços escolares, com excepção da Escola Secundária, cujo projecto já está concluído, entregue e candidatado. Só falta o aval do Governo para podermos lançar a obra. Também na saúde demos passos importantes. A nova Unidade de Saúde Familiar é um marco nesse caminho.

Outro investimento que considero estruturante foi a substituição total da iluminação pública para tecnologia LED. Mudou-se o concelho inteiro e, além do impacto ambiental, teve um efeito directo nos custos de funcionamento. É um exemplo claro de investimento com retorno.

Mas não posso deixar de referir a dimensão económica. A instalação da base logística da Mercadona, a expansão da SUMOL+COMPAL e agora a chegada de uma nova empresa multinacional ao espaço deixado pela Fresh 52 são exemplos de como conseguimos criar condições para atrair grandes investimentos. Isto não foi obra do acaso. Foram anos de contactos, reuniões, persistência. E, devo dizer, houve quem não acreditasse que fosse possível. Felizmente, hoje está à vista de todos. 

Fala-se muito na persistência como traço do seu estilo político. É essa a palavra-chave destes três mandatos?

Sim, talvez seja. Persistência e resiliência. São formas simpáticas de dizer que sou teimoso, mas acho que é uma teimosia saudável. Quando acreditamos que algo faz falta à nossa comunidade, temos de bater às portas que forem precisas, insistir, argumentar, propor soluções. Foi assim que conseguimos desbloquear muitas coisas – da Protecção Civil ao investimento privado, da saúde à habitação.

E quais foram os momentos mais desafiantes e mais gratificantes ao longo deste percurso?

O mais desafiante foi mesmo a atração de investimento privado. É um processo lento, cheio de obstáculos. São anos de reuniões, de negociações, de mostrar que Almeirim tem condições, que é fiável, que é competitiva. Conseguir trazer esses investimentos – e refiro a Mercadona, mas também esta nova multinacional – foi exigente, mas muito gratificante.

Já o momento mais simbólico, talvez tenha sido o arranque do cluster da Protecção Civil. É um projecto que me acompanhou desde os tempos de vereador, e foi a primeira grande materialização de uma visão mais alargada para o concelho. Ver concretizar essa ideia foi um sinal de que estávamos no bom caminho.

Falámos de saúde, educação, habitação… Tudo áreas onde o investimento municipal foi determinante. Que mensagem deixa, em termos mais amplos, sobre o papel do poder local?

O poder local tem de estar próximo e tem de ter capacidade de antecipar problemas. No caso da habitação, por exemplo, comprámos recentemente um terreno para construir 170 apartamentos a preços acessíveis. Já temos os projectos, as infra-estruturas estão definidas, estamos prontos para lançar o processo. Só falta o modelo legal final. Nada disto se faz à velocidade que gostaríamos – há entraves, há burocracia – mas o importante é não baixar os braços.

E falo com total franqueza: o Estado central tem falhado nesta matéria, tanto o anterior Governo como o actual. Falta visão, falta execução. Há soluções que já existiram no pós-25 de Abril e que devíamos recuperar. O Estado, hoje, é muitas vezes um obstáculo, sobretudo por excesso de regulamentação. Precisávamos de leis com mais bom senso. Ou melhor: de leis que incluam espaço para a decisão justificada de quem está no terreno, que conhece o território. Porque Almeirim não é Lisboa, e mesmo dentro de Almeirim há realidades muito distintas.

Ou seja, é o bom senso que falta?

Exactamente. As leis deviam dar margem à interpretação fundamentada, à decisão contextualizada. Não é o mesmo governar o centro de uma capital ou uma aldeia dispersa. E, muitas vezes, quem está no terreno, como os autarcas, sente-se de mãos atadas. E isso é frustrante, porque temos vontade, temos projectos, temos até orçamento… mas falta-nos o desbloqueio legal. E quando não se consegue decidir, a qualidade de vida das pessoas sofre.

Ao aceitar o desafio de ser candidato à presidência da Câmara Municipal de Santarém pelo Partido Socialista, que tipo de continuidade – e também de mudança – é que pretende representar?

Aquilo que eu gostava de levar para Santarém é uma forma de pensar o território com organização, proximidade e resposta. Dizem-me muitas vezes que Santarém tem muito mais área, mais população, mais complexidade. É verdade. Mas também tem mais orçamento e mais meios. O que está em falta, na minha opinião, é precisamente essa capacidade de ligação efectiva às pessoas.

Não podemos aceitar que, numa cidade com esta dimensão, os cidadãos fiquem meses à espera para tratar de um assunto simples com o urbanismo, por exemplo. E digo-o com toda a frontalidade: é preciso uma administração mais proactiva, que diga “não pode fazer assim, mas pode fazer desta forma”. Uma administração que esteja ao lado das pessoas, das empresas, das associações. Que não seja um obstáculo, mas uma ponte.

E como é que se concretiza essa ideia de proximidade?

Quero implementar um modelo de atendimento muito claro: um dia por semana, das oito da manhã às oito da noite, com disponibilidade para ouvir qualquer pessoa. Quem quiser pode marcar hora, quem quiser pode simplesmente aparecer. E esse princípio quero replicá-lo em zonas como São Domingos, que têm grande concentração urbana, mas que precisam também de espaços regulares de diálogo directo.

Ouvir, escutar, resolver. Não prometo milagres, mas prometo esforço, presença e coerência. Como costumo dizer: “todo o fogo se apaga com um balde de água, se estivermos no sítio certo à hora certa”. E é isso que quero garantir: estar no terreno, perceber os sinais antes que os problemas escalem. É assim que se lidera com sentido de missão.

Que prioridades já identificou no território escalabitano, fruto dos contactos que tem feito?

Há algumas áreas em que a resposta tem de ser imediata. A primeira é o urbanismo, porque é por aí que passam os processos de construção, reabilitação, investimento. Temos de deixar de ter atrasos incompreensíveis. Uma Câmara não pode demorar meses a responder a uma empresa que quer instalar-se, ou a uma família que quer construir casa. É aqui que começa a transformação: num atendimento capaz, célere, orientado para a solução.

Depois, a habitação. Santarém precisa de criar condições para fixar população, sobretudo nas freguesias mais afastadas. O concelho tem infra-estruturas – estradas, água, esgotos, telecomunicações – que chegaram a muitas aldeias. Mas esses investimentos só fazem sentido se forem acompanhados por medidas que incentivem a fixação de famílias.

Eu defendo, por exemplo, que a Câmara identifique terrenos, os compre, faça as infra-estruturas e depois os venda ao preço de custo. E que isente de taxas quem quiser construir com um projecto-tipo. Isto não é perda de receita – é um investimento na sustentabilidade do território. Numa escola com salas a meio gás, um aluno a mais é um ganho. Numa freguesia envelhecida, uma família nova é uma esperança renovada.

E no plano social, o que destaca?

O relacionamento com o movimento associativo tem de ser uma prioridade. As IPSS, os clubes, as colectividades culturais e desportivas, as associações humanitárias, todas elas mobilizam milhares de pessoas e prestam um serviço ao território que o Estado jamais conseguiria pagar, mesmo que fosse apenas um euro à hora.

Essas pessoas fazem-no por paixão, por generosidade, por sentido de comunidade. E merecem uma Câmara que facilite, que ajude, que desburocratize. Obviamente, sempre com regras. Mas com agilidade, com bom senso e com respeito pelo trabalho voluntário. Porque quando ajudamos quem ajuda, estamos a ajudar todos.

E em termos de educação?

Santarém precisa de reforçar a oferta – desde creches até actividades de ocupação durante as férias. Não é uma questão de concorrer com os privados ou as IPSS, é responder a uma necessidade real. Neste momento, mesmo com a oferta existente, não se consegue cobrir todas as necessidades. E quando uma mãe ou um pai não tem onde deixar o filho, isso afecta a economia, o bem-estar e até a fixação de pessoas no concelho.

Há também uma crítica implícita à falta de meios internos?

Sim, há uma necessidade clara de reforçar os recursos internos da Câmara. Não se trata de internalizar tudo, mas há áreas em que é incompreensível não termos resposta: electricistas, canalizadores, carpinteiros, mecânicos. Coisas básicas que, se resolvidas internamente, evitam gastos e ganham em eficácia.

É um modelo de gestão mais sustentável. Não se trata de contratar por contratar, mas de ter uma estrutura mínima que assegure a manutenção do que existe. Isso é respeitar o dinheiro público. E respeitar as pessoas que esperam que as pequenas coisas do dia-a-dia sejam resolvidas.

Como interpreta os resultados das últimas eleições legislativas e europeias? Que sinais devem merecer maior atenção por parte do poder político?

A primeira nota que tenho a dizer é directa: não creio que existam, em Portugal, um milhão e trezentas mil pessoas fascistas. Mas é esse o número de pessoas que votaram em partidos que se alimentam desse discurso. É evidente que há quem defenda ideias racistas, ou o regresso à ditadura, mas isso não representa a maioria. O que há, sim, é um enorme descontentamento. E esse descontentamento foi capitalizado por forças que prometem respostas simples para problemas complexos.

Há quem vote nesses partidos por protesto, por frustração, por sentir que o sistema não responde. E essa frustração é legítima. O problema é quando se canaliza esse protesto para soluções que, na prática, agravam o que está mal.

E quais são, na sua opinião, os principais factores que alimentam esse descontentamento?

O maior problema é o aumento da desigualdade. A distância entre ricos e pobres aumentou brutalmente. Antigamente, por exemplo, ser bancário era uma profissão prestigiada. Hoje, os bancários são mal pagos, sujeitos a ritmos e pressões brutais, mesmo quando os bancos apresentam lucros gigantescos. Isto acontece por uma razão: porque os accionistas querem lucros cada vez maiores e não querem repartir melhor esse valor.

Esta lógica de maximizar dividendos está a destruir a coesão social. E o mesmo se passa com outros sectores, como a agricultura. É inadmissível que um agricultor receba 10 ou 20 cêntimos por um produto que depois é vendido a 1 ou 2 euros no supermercado. Defendo, com clareza, que devia haver um limite legal para a margem entre o preço pago ao produtor e o preço cobrado ao consumidor. Porque esta diferença absurda é imoral e contribui para perpetuar a pobreza de quem produz.

Acredita que os partidos populistas não têm uma resposta para este problema?

Exactamente. A resposta desses partidos não resolve o essencial. Veja-se o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos. O que está a propor são cortes orçamentais brutais na saúde pública, precisamente onde as pessoas mais vulneráveis precisam de apoio. Os benefícios fiscais que defende favorecem os milionários e penalizam os trabalhadores. Isso vai agravar as desigualdades, não resolvê-las.

O discurso pode ser sedutor, mas a prática vai sempre no sentido de beneficiar quem já tem muito. E isso vê-se nos apoios financeiros, nos impostos, nas políticas. E depois, quando os eleitores percebem que as medidas os prejudicam directamente – ou prejudicam os seus filhos e os seus pais – já é tarde.

Mas o sistema político também tem de assumir responsabilidades?

Sem dúvida. A política tem falhado em dar resposta rápida, eficiente e justa. As pessoas precisam de ver resultados. Precisam de sentir que o esforço compensa, que há justiça na redistribuição, que quem trabalha não fica para trás. Isso é o que move muita gente a virar costas ao sistema.

Mas volto a dizer: não se resolve este descontentamento com fórmulas populistas ou autoritárias. Resolve-se com justiça social, com regulação inteligente da economia, com protecção aos mais frágeis e com políticas públicas que funcionem. E isso implica coragem. Implica enfrentar interesses instalados, redistribuir rendimentos, mudar prioridades.

As autarquias podem ter um papel relevante neste contexto?

Podem e devem. As autarquias são o primeiro patamar da democracia. São onde as pessoas sentem mais directamente as políticas públicas. É ali que se resolve o problema da creche, da escola, da habitação, do arranjo da estrada. E é por isso que acredito que as câmaras têm de ser espaços de resistência democrática. De proximidade, de inclusão, de exemplo.

Enquanto conseguirmos resolver pequenos e grandes problemas no plano local, enquanto mantivermos o diálogo e a transparência, conseguimos evitar que a raiva e a frustração se transformem em radicalismo. É também isso que me move: provar que a política pode ser feita com ética, com verdade e com sentido de serviço.

O Presidente tem defendido, em várias ocasiões, a regionalização como caminho para um país mais justo e equilibrado. Mantém essa convicção?

Mantenho totalmente. O problema é que não acredito que ela se faça. E não é por falta de argumentos, é por falta de vontade de quem manda. Quem está nos ministérios, quem dirige os grandes centros de decisão, não quer perder poder. E, por isso, trava qualquer avanço nesta matéria com um argumento que é populista e enganador: “vai haver mais políticos”. Não é verdade.

Com a regionalização bem feita, poderíamos até ter menos despesa. Porque acabariam as direcções regionais, sub-regionais e departamentos desconexos de muitos ministérios, que hoje coexistem sem articulação, sem estratégia integrada. Teríamos uma estrutura política clara, eleita, responsabilizável e com competências definidas. E isso seria muito mais eficiente.

Há exemplos concretos que sustentam essa sua visão?

Basta olhar para a Europa. Portugal, a Grécia e a Irlanda são os únicos países da União Europeia que não têm regiões político-administrativas com eleições próprias. França, Espanha, Itália, Alemanha, todos têm. E todos conseguem, por isso, tomar decisões mais rápidas, mais ajustadas ao território, mais coerentes com as realidades locais.

E nem sequer estamos a falar de perder unidade nacional. Veja-se o caso da Madeira e dos Açores: evoluíram extraordinariamente com o poder regional. E não perderam identidade nacional. Muito pelo contrário. O que seria hoje a Madeira se não tivesse governo regional? Continuaria, em muitos aspectos, na pobreza e no isolamento. A regionalização foi um motor de desenvolvimento e de dignidade.

Acha que há resistência dentro dos próprios partidos?

Sim, e incluo o meu partido, o Partido Socialista. Ao longo dos anos houve oportunidades para avançar e não se avançou. E quando se tentou, fez-se mal, como aconteceu com o referendo. A Constituição já era clara sobre a criação das regiões, mas deixaram-se dominar pelo medo político e pelos jogos de poder.

A verdade é que, durante o processo de descentralização recente, vimos várias direcções e estruturas da administração central a lutarem para não perder nem uma vírgula do seu domínio. Não se trata de competência, trata-se de controlo. E isso empobrece o país, porque as decisões continuam a ser tomadas por quem não conhece os territórios.

E como responde à crítica de que “ninguém sabe quem são os presidentes das CCDR”, e que a regionalização não mudaria isso?

É precisamente por isso que precisamos de uma regionalização com legitimidade democrática. Hoje, as CCDR têm sete ou nove dirigentes e ninguém os conhece, porque não são eleitos. Se passassem a sê-lo, ganhariam visibilidade, escrutínio e responsabilidade. E isso só reforçaria a democracia.

Aliás, basta fazer o exercício ao contrário: se acham que não vale a pena ter regiões porque seria “mais um nível de poder”, então acabem com as juntas de freguesia e com as câmaras municipais. Veja-se o que era o país antes de 1974, com os presidentes de câmara nomeados pelo regime. O salto que o país deu desde que esses cargos passaram a ser eleitos é evidente. 

Isso mostra o poder transformador da democracia local. E o mesmo aconteceria com as regiões. A regionalização é, portanto, uma questão de justiça territorial?

Absolutamente. É uma questão de justiça, de eficiência e de proximidade. Os territórios são diferentes e precisam de respostas diferentes. Um país governado apenas a partir de Lisboa não é um país equilibrado. É um país onde as assimetrias se aprofundam.

Regionalizar não é dividir, é unir. É dar a cada região as ferramentas para decidir, para investir, para inovar. E isso não é ameaça nenhuma à coesão nacional. É, antes, a sua melhor garantia.

Sai da presidência da Câmara de Almeirim com a consciência tranquila? Ou sente que ficou algo por fazer?

Há sempre coisas por fazer. Se tivesse mais quatro anos, com certeza que algumas obras estariam concluídas. Gostava de ter terminado a circular urbana, de concluir o parque urbano nas Fazendas de Almeirim e em Benfica do Ribatejo, de avançar com o espaço de lazer na Raposa. São investimentos pensados, estruturados, e que infelizmente não têm a rapidez que desejaríamos.

Também me teria dado satisfação ver concluída a requalificação da escola secundária e a construção das novas creches. O terreno está comprado, os projectos estão pensados, mas a execução depende de tempos que, muitas vezes, não controlamos. E, claro, a questão da habitação. Idealizei esse projecto com base numa lógica de acessibilidade e justiça social. Gostaria de o deixar fechado.

Mas o mais importante é isto: fico com a consciência tranquila porque sei que dei o meu melhor. E fico com a certeza de que deixo uma cidade melhor do que aquela que encontrei.

Ao fim de 32 anos de vida política autárquica, sente-se o mesmo homem que entrou para a Assembleia Municipal em 1993?

Não. Seria estranho que fosse. A vida transforma-nos. A experiência, as responsabilidades, os erros, as vitórias… tudo isso nos molda. Mas continuo a acreditar nos mesmos valores que me trouxeram até aqui: a proximidade, a justiça social, a responsabilidade pública. E, acima de tudo, a humildade de não esquecer de onde vim.

No outro dia, em campanha, uma senhora disse-me: “não se deve lembrar de mim, mas lembro-me de o ver nas festas, a servir à mesa, a tirar imperiais, como qualquer voluntário”. E essa imagem, que para ela foi marcante, para mim é reveladora. É isso que mais me define. A ideia de que o poder só faz sentido se for vivido com os outros, nunca acima deles.

Essa proximidade tem raízes profundas?

Tem. Os meus avós maternos foram agricultores de subsistência. Levantavam-se às seis da manhã para trabalhar no campo. Ainda me lembro de andar de carroça, de ver, lá em casa, o porco que se criava para abater. Os meus avós paternos, que conheci pouco, foram criados de servir. E o meu pai, operário fabril, só pôde estudar porque um vizinho pagou o exame de admissão. A minha mãe, na maioria do tempo, foi doméstica. Trabalhou algum tempo na Santa Casa, mas a vida dela foi sobretudo cuidar dos outros.

Essas histórias, essa memória, são o que me constitui. Quando invisto na educação ou na saúde, não o faço por cálculo político. Faço-o porque sei o que significa não ter acesso. Porque ouvi em casa o que era não ter possibilidades. Porque cresci a saber que mérito e oportunidade não são sinónimos. E que não basta dizer às pessoas para se esforçarem – é preciso criar condições para que tenham hipótese de chegar mais longe.

É uma crítica à ideia de meritocracia?

É. A meritocracia pura e dura é uma falácia. Quem tem recursos, quem viaja, quem aprende línguas, quem tem acesso à cultura e ao tempo, parte sempre à frente. E isso não significa que quem não tem não possa lá chegar, mas o caminho é muito mais difícil. E o papel de quem governa – seja local ou nacional – é nivelar o terreno. Criar oportunidades. Corrigir desigualdades.

Eu andei de avião pela primeira vez com vinte e muitos anos. O meu filho andou com seis. Ele tem hoje oportunidades que eu não tive. E ainda bem. Mas o meu papel é garantir que outras crianças, com menos recursos, também possam ter essas oportunidades. É isso que o poder local pode fazer. Às vezes com gestos simples, com programas pequenos, mas que mudam vidas.

E é com esse sentido de missão que parte para o desafio seguinte?

Sim. Sei que o caminho não é fácil. Que Santarém tem desafios imensos. Mas também sei que a política, quando é feita com verdade e com empatia, pode ser transformadora. E se há coisa que aprendi é que, às vezes, uma decisão tomada no momento certo, com atenção, com escuta, com coragem, vale mais do que mil discursos.

Não me movo por ambição pessoal. Movo-me por um ideal de justiça e de compromisso. Porque acredito que podemos fazer melhor. E porque sei que, no fim, o que fica são as pessoas. São as vidas que tocámos. E essa é, para mim, a verdadeira medida de um autarca.

FMM

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