Foi pela mão do meu Pai que conheci os campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Tinha 17 anos, idade suficiente para compreender a diferença entre o bem e o mal, entre a magia e a tragédia.
Antes de entrarmos, como uma mão apoiada no meu ombro, recordo-me do meu Pai me perguntar: estás preparado? Respondi-lhe que sim. Estava enganado, profundamente enganado. Ninguém fica indiferente ao passar pelo portão principal daquele que foi o maior campo de extermínio nazi. “Arbeit Macht Frei” (que ironicamente significa: o trabalho liberta) ainda simboliza a condenação à morte de gente que nunca cometeu qualquer crime. De gente que morreu por um sim ou por um não. De gente que sucumbiu às sinistras e macabras atrocidades praticadas pelos monstros do Bloco 10. De mulheres que no âmbito de um programa de esterilização hediondo foram obrigadas a tornarem-se escravas sexuais no Frauenblock (Bloco 24). Mulheres judias sobretudo, ou alemãs que ajudaram judeus ou tropas inimigas do regime, obrigadas a prostituírem-se diariamente em bordéis (“casas especiais” – nome dado há época por Heinrich Himmler) com dezenas de homens, muitas vezes ao longo de 22 horas, fosse com soldados ou com prisioneiros que lhes obedecessem. Quinze minutos de sexo custavam 2 marcos num tempo em que um maço de tabaco custava 3. Em Auschwitz não havia escolha!
Contrariando José Rodrigues dos Santos (JRS), não é através da leitura que o leitor de 2021 consegue recuar até 1944. Para sentir os cheiros, as cores e as emoções de Auschwitz é preciso ir lá. É preciso olhar para as paredes dos fornos e compreender que todo aquele negrume representa vidas humanas. É olhar para a localização das suas quatro câmaras de gás e dos respetivos crematórios encostados à linha férrea e ouvir o eco das vozes de gente em ruínas gritando incessantemente por água, por pão, por amor e por piedade. É ouvir o ruído silencioso do bárbaro latido dos cães e das vozes vociferando “direita e esquerda”. São estes os silêncios que falam. São estes os gritos de dor que sobressaem das paredes. São estes os gritos do choro das famílias separadas ao som das lágrimas porque as lágrimas são o espelho dos destroços humanos gerados pela violência e pela irracionalidade. Só não os ouvem aqueles que têm o coração repleto de indiferença. Em Auschwitz não há magia. Em Auschwitz encontrei muitos óculos de gente que já não vê; muitas malas de gente que nunca regressou; muitos brinquedos que ficaram por partir. Em Auschwitz só existe morte e muitas lágrimas. Auschwitz representa o fundo do poço, o lodo da crueldade humana. Infelizmente, nem todos aqueles que fisicamente se salvaram acabaram por se salvar. Ficam por responder questões enigmáticas sobre quem teve mais sorte. Quem morreu ou quem sobreviveu? Quantas memórias? Que tipo de memórias?
Ao contrário de JRS, não aceito o inaceitável nem me esforço sequer em tentar “humanizar” toda aquela matança. Ao contrário do que pensa JRS não se pode normalizar um ato de puro ódio com um “(…) Pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?”. Ao contrário do que disse JRS, importa sim, e muito, defender a verdade. Seja qual for a perspetiva com que se olhe, é nosso dever negarmos o nosso consentimento.
No próximo dia 27 de janeiro, passam precisamente 76 anos da data em que os soldados soviéticos abriram as portas do maior complexo de morte que a Humanidade alguma vez conheceu. Auschwitz não é para gostar ou deixar de gostar. É para sentir, para recordar o quão frágil é a nossa condição humana porque no dia em que nos esquecermos disso voltaremos a cometer os mesmos erros e nenhum de nós conseguirá olhar com alegria para o lado de Fora da Caixa.
Pedro J. E. Santos
Estudante de Medicina na FMUL