A matemática, como a música, fala quando as palavras faltam ou falham. Mais que isso, a matemática é uma linguagem de substantivos que dispensa adjetivos. Em alturas de muitas palavras, sobretudo muitos adjetivos, o recurso à matemática e aos números pode ser esclarecedor. É o que se passa no momento atual, quando a eficácia das vacinas face à variante Delta (“Indiana”) do SARS-CoV-2 e a imunidade de grupo estão na ordem do dia; muito se diz e alguma confusão é natural.

Recentemente foram conhecidos dados* de cálculo da eficácia das vacinas Pfizer e Oxford/AstraZeneca no Reino Unido, em plena vaga de expansão da variante Delta. São dados do “mundo real”, não ensaios ou testes laboratoriais, daí só incidirem sobre estas duas vacinas, que são as mais usadas no Reino Unido. Os dados da eficácia das vacinas face às variantes Alfa (“variante inglesa”) e Delta constam do Quadro 1. Os números falam por si em matéria de eficácia das vacinas, papel da segunda dose e diferença entre formas mais moderadas ou mais graves da doença.

Quanto à imunidade de grupo, podemos fazer uns cálculos aproximados que também falam por si. O conceito de imunidade de grupo refere-se à percentagem de pessoas que têm de estar imunizadas numa população para que os vírus deixem de ter capacidade de se propagar. A partir deste valor de imunização global os vírus entram em regressão natural; por isso é um valor tão importante. Com vírus muito transmissíveis (por exemplo, o do sarampo) esta fração tem de ser muito alta, com vírus menos transmissíveis é mais baixa. Com o SARS-CoV-2, este valor foi calculado em 70%, isto é, com 70% da população totalmente imunizada o SARS-CoV-2 entraria em regressão natural até à extinção. Acontece que se confundiu primeiro 70% da população com 70% dos adultos e confundiu-se “totalmente imunizados” com “vacinados”. As duas falhas de interpretação levaram a que se vivesse algum tempo na ilusão que bastaria alcançarmos 70% de execução no plano de vacinação para que o SARS-CoV-2 entrasse em regressão por si só. O irrealismo é evidente. Não só não estamos a vacinar toda a população, como as vacinas não têm uma eficácia de 100%. Num cálculo aproximado, recorrendo aos dados do Quadro 1, assumindo a dominância da variante Delta e, ainda que a eficácia vacinal média de toda a vacinação fosse de 79% (valor da vacina Pfizer para 2 doses), a imunidade de grupo passaria para 88% (70%/0.79=88%). Portanto, teríamos de vacinar 88% da população. Atendendo a que mais de 12% da população portuguesa tem menos de 18 anos e está excluída (para já) do plano de vacinação, vemos que a imunidade de grupo é uma meta inalcançável no quadro atual. Esqueçamos o conceito de imunidade de grupo e aceleremos o programa de vacinação para o completar tão rápido quanto possível.

Para concluir, uma reflexão sobre o impacto atual da pandemia em número de vítimas. É frequente a desvalorização do número de vítimas na atualidade com base em comparações com a situação infernal que vivemos no passado inverno. Não é boa prática reportarmo-nos a uma situação de exceção; se queremos criar regras que nos permitam um ponto de equilíbrio entre uma vida “desconfinada” e o risco, em termos de saúde pública, olhemos para situações onde esse balanço já se estabilizou.

Chegamos a ter 6-7 vítimas mortais por dia, o que parece pouco face aos piores dias da pandemia vividos em Portugal (303 vítimas no dia 31 de janeiro, por exemplo) mas está longe de poder ser ignorado. A sinistralidade rodoviária nos últimos anos está 2-3 vezes abaixo desse valor e a condução/circulação é uma atividade extremamente regulada: não conduz quem quer, onde quer, o que quer, quando quer. Foi difícil reduzir a sinistralidade automóvel e exigiu regular a alcoolémia de condutores, a tecnologia automóvel, a formação dos condutores, as regras de circulação… Não sendo um exemplo diretamente transponível, é o que está a acontecer com o estabelecimento de regras em tempo de pandemia: estamos à procura de um conjunto de procedimentos e normas que nos permitam reduzir o impacto da pandemia e encontrar um caminho. Quase tudo pode estar em aberto mas não pode estar em aberto a ideia que assistir à morte sistemática de tanta gente por uma doença infetocontagiosa é natural e não merece atenção. Não o fizemos na década de 1990 quando ainda tínhamos cerca de 6 vítimas mortais por dia nas estradas portuguesas e não o devemos fazer agora.

Miguel Castanho – Investigador em Bioquímica

  • fontes: Sheik et al. The Lancet, 14 junho 2021 e N. Davis, The Guardian, 15 junho 2021.
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