Santarém e os Scalabis Night Runners estiveram na origem duma dinâmica nacional que continua espalhada por esse País fora (mau grado a interrupção motivada pela pandemia): a existência de dezenas de comunidades abertas a todos os que queiram treinar à noite, procurando hábitos de vida saudáveis e invadindo as ruas mais emblemáticas das cidades, vilas ou aldeias, através da realização de treinos e eventos noturnos de regularidade mínima semanal.

No dia 6 de dezembro de 2015, saía uma reportagem muito reveladora daquilo que estava a acontecer nas ruas da generalidade das cidades, vilas e aldeias de Portugal por essa altura: um autêntico boom do fenómeno dos grupos de corrida noturna por todo o País, os chamados night runners.

Nesse suplemento, aliás muito bem ilustrado do jornal “O Jogo”, com texto de Rui Jorge Trombinhas, desde logo se pretendia refletir um pouco sobre quais seriam os motivos que levavam, na altura, atletas individuais ou pequenos grupos de amigos a criarem comunidades abertas a todos os que quisessem treinar: “Procurar hábitos de vida saudáveis”, “fazer da cidade um local mais dinâmico”, “invadir, à noite, as ruas mais emblemáticas”.

Para contextualizar, lembremo-nos que, nesse ano, Portugal já se estava a libertar da crise das dívidas soberanas, após duros anos de condicionamento económico e financeiro imposto pela Troika nos anos anteriores.

Em 2015, já os night runners se encontravam espalhados por todo o país e reuniam, em conjunto, uns bons milhares de atletas, quase sempre à noite, depois de um dia de trabalho, quando muitos preferiam o recanto do lar.

Efetivamente, não havia dia em que não se vissem pequenas multidões a correr nas principais cidades do país. Sintomaticamente, dizia-se na reportagem: “Às segundas-feiras reúnem-se os Évora Night Runners e os Braga a Correr, à terça são os Correr Lisboa e os Corrida Noturna de Setúbal. À quarta é em Santarém, Beja, Coimbra, Leiria e Viseu; à quinta corre-se no Porto e à sexta-feira todo o Algarve se junta para palmilhar quilómetros. Em Aveiro corre-se ao sábado e em Castelo Branco é nas noites de lua cheia que o grupo se reúne para correr.”

Conforme se dizia também na reportagem, entre os mais antigos e conhecidos grupos de amantes da corrida, estavam os Scalabis Night Runners, de Santarém.

Ora, na verdade, este era e é o grupo mais antigo de todos, tendo sido totalmente pioneiro no fenómeno: nasceu em 2009/2010, enquanto todos os outros grupos de corrida noturna mencionados na reportagem surgiriam apenas no autêntico boom de 2013/2014/2015: “Braga a Correr”, em maio de 2015, “Viriathvs Runners” de Viseu, meados de 2014, “FullMoon Run Party” de Castelo Branco, fevereiro de 2013, “Évora Night Runners”, janeiro de 2015, “Corridas à 6.ª Feira” em pontos diferentes do Algarve, meados de 2013, “Pax Julia Runners” de Beja, meados de 2014, “Corrida Noturna de Setúbal”, junho de 2013, “Correr Lisboa”, abril de 2013, “Brisas do Lis Night Run”, de Leiria, abril de 2013, “Night Runners Coimbra”, novembro de 2013 e “Aveiro NIght Runners”, agosto de 2013.

Muitos outros casos poderiam ser aqui indicados, sendo estes apenas alguns exemplos de grupos de corrida que qualquer um pode encontrar facilmente na internet, com destaque para o Facebook.

Os “Abt Night Runners” ou os “Entroncamento Night Runners”, só para dar mais dois exemplos, neste caso ribatejanos, são grupos também eles criados em 2013, destinados a percorrer as cidades de Abrantes e do Entroncamento à noite. “Caminhada e corrida aliadas ao salutar convívio”, referem os “Abt Night Runners” na sua página do Facebook.

Perguntar-se-á: porquê a partir de 2013? E porquê com características tão idênticas?
Ora, não tendo obviamente existido um planeamento ou uma origem de nível nacional ou internacional para este movimento, está bem de ver que, do que se tratou verdadeiramente, foi da replicação em cada localidade de algo criado por alguém ou um escasso conjunto de “alguéns”.

Claro que não estamos a falar de clubes ou grupos de corrida, mais ou menos institucionalizados, que obviamente já existiam, aliás há bastante mais tempo, como os Porto Runners.

Nem sequer estamos a abordar a existência de grupos de corrida informal com o hábito de treinar regularmente ao final da tarde nos dias de semana e nas manhãs dos sábados, domingos e feriados.

Esses podemos dizer (por experiência própria) que remontam aos anos 80 do século passado, quando os corredores habituais dessa altura (participantes em provas de estrada) preparavam as célebres provas do País, como a meia-maratona da Nazaré ou os 20 kms de Almeirim, já com números muito significativos de participantes populares.
Nos anos 90, as meias-maratonas de Lisboa (ponte 25 de abril) e mais tarde a de Portugal (ponte Vasco da Gama), para além de outras provas de menor dimensão, vieram inclusive massificar essa participação, com muitos milhares de pessoas a inscreverem-se entusiasticamente nas chamadas “mini-maratonas”, com a distância de cerca de 7 kms.

Todavia, o fenómeno dos “night runners” foi algo de novo e muito diferente – e até surpreendente – que veio regalvanizar e concretizar as meritórias ideias do desporto para todos e da prática de hábitos de vida saudável, com um enquadramento cultural e específico de cada localidade, à noite!

E como começou tudo isto?
Contar em breves palavras a história dos Scalabis Night Runners contribui decisivamente para se perceber a origem desta dinâmica, a qual se expandiu, entretanto, por todo o País.

Evitarei aqui alusões a autorias individuais, deste ou daquele aspeto, no itinerário, necessariamente complexo, que levou à organização da primeira Scalabis Night Race, em abril de 2013, (evento que, como veremos, gerou o tal boom night runner pelo País), com uma única exceção: a incontornável autoria, estritamente individual, da criação do próprio CONCEITO e conceção da imagem do grupo – e mais tarde associação – Scalabis Night Runners, exclusivamente atribuível a uma pessoa, que é o Miguel Saturnino, designer gráfico de profissão.

Essa imagem – que traduzia na perfeição o “ambiente” do grupo, com a sua “visão” e os seus “valores” iniciais – foi um sucesso tal, desde o início, que não deixou de inspirar as outras “tribos” por todo o País, que quase a decalcavam ou acabavam por adaptar à sua realidade. Alguns dos grupos atrás referidos são aliás exemplo disso mesmo.
De assinalar que, já em junho de 2011, o Grupo Scalabis Night Runners vinha referenciado no roteiro “Santarém em 24 horas” no Suplemento “Tentações” da revista “Sábado”.

Mas tudo começou efetivamente em 2009, quando um grupo de três amigos queria apenas correr de forma regular pelas ruas do centro histórico da cidade. Faziam-no todas as quartas-feiras à noite (21h30), regra que ficou assente até aos dias de hoje. Em outubro ainda desse ano de 2009 começaram, entretanto, a aparecer mais alguns amigos.

Todavia, o momento decisivo para a criação dos Scalabis Night Runners ocorreu logo em janeiro do ano seguinte (2010), quando foi criada a imagem, com um determinado enquadramento (visão) e uma página no Facebook. A partir daqui, logo em 2010, o crescimento tornou-se imparável, ao ponto de uma vez por ano os Scalabis Night Runners convidarem todo o país para correr, na Scalabis Night Race, que já teve sete edições desde 2013 e mostra a cidade ribatejana pela perspetiva de quem lá mora.
Importa lembrar, também, que a explosão do Facebook em Portugal ocorreu de igual modo naqueles anos de 2009/2010, o que coincidiu, depois, com o facto de estar cada vez mais na moda o fenómeno da corrida e das caminhadas. Era, além do mais, o desporto mais barato (em época de crise económica) e mais fácil de praticar, pois só se necessitava de uns ténis, uns calções, uma t-shirt e … nós próprios.

A ambição de organizar um evento marcante na cidade levou o grupo, (que já tinha uma imagem perfeitamente definida desde 2010), em 2013, a organizar a 1.ª Scalabis Night Race, em parceria com o Município de Santarém e o Instituto Politécnico de Santarém. O percurso foi naturalmente uma réplica dos treinos noturnos, adaptados a uma competição de 10 km. Não faltou ainda a Mini/Caminhada de 5 km e a Kids Race para os escalões jovens. Foi um evento marcante, que foi muito mais além do que uma simples prova de atletismo. Criou-se uma prova épica, histórica e rápida, marcada pelo que de melhor a nossa cidade tinha e tem para oferecer.

A primeira edição foi a 20 de abril de 2013. Seguiram-se as edições de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019, normalmente às 21.00 do sábado imediatamente anterior ao 25 de Abril. Pretende-se estar associado a esta marcante data, a data da revolução que teve origem na nossa cidade.

Como já todos sabemos, a prova percorre as principais ruas do centro histórico da cidade, com diversos pontos de animação durante o percurso, a atuação de grupos/bandas em pontos estratégicos, tunas das Escolas Superiores do IPSantarém, ranchos folclóricos, fandango, campinos a cavalo e abastecimento de vinho tinto na mítica Taberna do Quinzena. Há ainda a passagem pelo interior da Porta de Armas da Escola Prática de Cavalaria (de onde saiu a coluna militar de Salgueiro Maia no 25 abril), ao som de canções como o “E Depois do Adeus” e “Pedra Filosofal” e com imagens da revolução dos cravos.

O êxito da iniciativa torna-se evidente pelos números nos vários eventos (corrida, caminhada e Kids Race): 2013 com 1.750 participantes, 2014 com 2.250 e mais de 3.000 em 2015. Em 2016, foi a 16 de abril com cerca de 4.000 atletas nas 3 provas do dia. Nos anos de 2017, 2018 e 2019, repetiu-se a dose, com a participação de cerca de 4.500 a percorrer as ruas da cidade.

De assinalar o caráter único do evento, que, como se disse anteriormente, vai muito para além da vertente desportiva. Na verdade, a componente cultural é fortíssima, com vários ranchos folclóricos, várias tunas, bandas, performances, muita música ao vivo espalhada pelo percurso, fogo-de-artifício e um espetáculo musical no final.
Este sucesso é atribuível ao grupo, no seu todo, enquanto coletivo. É essa a beleza do sentido de pertença, do espírito associativo e das “ideias que vivem e perduram no meio social.”

Sentirmo-nos parte de algo que correu bem, realçando apenas o coletivo. Claro que nada teria sido feito sem o inestimável contributo individual de várias pessoas, que sabem bem quem são, em diversos domínios da organização, desempenhando papeis muito diferentes, mas todos de igual modo importantes.

Por vezes parece-nos quase inevitável, em qualquer grupo ou organização, que a certa altura surja uma ou outra personalidade com dificuldade em fundir, apenas, o seu contributo individual com o puro interesse coletivo do grupo enquanto tal, sem esperar protagonismos ou reconhecimento pessoal. Parece tratar-se duma tendência muito presente nalguns seres humanos: o foco excessivo na intervenção individual, a expetativa egoística do reconhecimento por parte do grupo, a permanente comparação dos esforços de cada um e uma grande dificuldade em aceitar críticas (quiçá fruto de latentes inseguranças).

Claro que os Scalabis Night Runners não escaparam a esta inevitabilidade, tanto mais que juntaram, desde o início, pessoas muito “improváveis” de se juntar, formando um grupo aliás muitíssimo diversificado de “individualidades”.

Mas talvez tenha sido esse mesmo o segredo do sucesso! Uma vez que, a certa altura, quando se tornou necessário arregaçar as mangas e organizar um evento com um orçamento de algumas dezenas de milhares de euros, lá estava disponível, voluntária e empenhadamente, o/a profissional da gestão, do design, da tipografia, da investigação, do teatro, da banca, da empresa, dos seguros, da polícia, da justiça, da construção civil, do exército, dos bombeiros, da política, da comunicação social, da psicologia, da docência, etc.

Talvez a história ainda seja demasiado recente para maiores aprofundamentos, mas importa desde já assentarmos nesta realidade insofismável (e perfeitamente verificável), que é a de que Santarém e os Scalabis Night Runners estiveram, de facto, na origem e foram uma espécie de epicentro dum fenómeno que continua espalhado por esse País fora: comunidades abertas a todos os que queiram treinar, procurando hábitos de vida saudáveis, imprimindo dinâmica às localidades e invadindo, à noite, as ruas mais emblemáticas das cidades, vilas e aldeias.

Esperemos que todos possam regressar em força após a pandemia, ainda neste ano de 2021!

Pedro Carvalho

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