A propósito do Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, que se assinalou a 12 de Outubro, o Correio do Ribatejo esteve à conversa com a Enfermeira Marta Oliveira, que integra a Equipa Intra-hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos do Hospital de Santarém. Para a responsável, trabalhar nesta área “é um ensinamento a nível profissional e pessoal”: “Passamos a encarar a vida de outra forma, a relacionarmo-nos de outro modo, adoptamos uma atitude muito mais reflexiva em relação à morte, ao sentido da vida e ao propósito da nossa existência”.

Porque é que decidiu especializar-se em Cuidados Paliativos?
A área de Cuidados Paliativos sempre foi uma das que mais me fascinou, mas também era assustador pensar em cuidar de pessoas com intenso sofrimento. O meu percurso profissional encarregou-se de me colocar frente a pessoas com dor crónica complexa e muitas vezes, em fim de vida. Este sofrimento era mais do que físico, contemplando as componentes sociais, emocionais e espirituais da pessoa. Cedo percebi que era necessário outro tipo de abordagem, outro tipo de resposta, outra filosofia de cuidados. Em 2008, ingressei na Pós-Graduação em Cuidados Paliativos, mas o desejo de aprofundar o conhecimento, levou-me em 2009 ao Mestrado em Cuidados Paliativos da Universidade Católica, tendo adquirido grande parte dos conhecimentos nesta área. A possibilidade de trabalhar em Cuidados Paliativos veio apenas em 2016, com a criação da Equipa Intrahospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos do HDS, equipa que integro atualmente. Trabalhar em cuidados paliativos é um ensinamento a nível profissional e pessoal. Passamos a encarar a vida de outra forma, a relacionarmo-nos de outro modo, adoptamos uma atitude muito mais reflexiva em relação à morte, ao sentido da vida e ao propósito da nossa existência. Acho que passamos a “viver mais a vida”, pois temos a consciência diária da sua finitude.

Os Cuidados Paliativos ainda continuam a ser o parente pobre do sistema?
Não gosto de ver as coisas nessa perspectiva. Ao longo dos anos, tem havido mudanças importantes e significativas nesta área. O Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos CP, deu início à implementação de uma Rede Nacional de CP (RNCP) funcional, integrada nos três níveis de prestação de cuidados do SNS. Apesar de ainda insuficientes, foram criadas mais equipas e melhoradas as respostas assistenciais. Saliento ainda, a legalização do Testamento Vital desde 2014 e recentemente foi aprovado o Estatuto do Cuidador Informal. Ainda há um longo caminho a percorrer, para garantir equidade no acesso a CP de qualidade, adequados às necessidades físicas, psicológicas, sociais e espirituais, bem como atender às preferências dos doentes e suas famílias/cuidadores, mas acredito que lá chegaremos. É ainda importante sensibilizar a população e os profissionais de saúde para a importância dos CP, pois só assim poderão reivindicá-los como um direito e exigi-los para quem deles necessita.

A legalização da eutanásia foi recentemente discutida em Portugal e rejeitada. Parte da discussão centrou-se nos cuidados paliativos. São incompatíveis?
Não estamos em condições de discutir a legalização da eutanásia, quando os cuidados paliativos não são ainda uma realidade acessível a todos aqueles que necessitam deles. O pedido de eutanásia está habitualmente associado a sofrimento extremo e penso que a prioridade será reforçar as respostas no sentido de atender a esse sofrimento. A existência de Cuidados Paliativos de qualidade, traduz-se no alívio de grande parte do sofrimento (físico, emocional, social e espiritual) associado a doenças graves, incuráveis e progressivas, bem como no processo de morte. São cuidados que pretendem a melhoria da qualidade de vida da pessoa doente, apoiando também a família durante todo o processo de doença e na fase do luto. Se eutanásia e cuidados paliativos são incompatíveis? Penso que, quem tem acesso a cuidados paliativos de qualidade, não pede eutanásia.

Que estratégias se deveriam implementar para melhor prestar apoio ás pessoas com doenças avançadas e às famílias?
As estratégias passam, sem dúvida, por implementar mais Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos e aumentar a capacitação e diferenciação de todas as equipas de cuidados paliativos actualmente existentes, quer pelo reforço de profissionais, quer pela exigência na formação teórica e prática. É ainda importante garantir uma boa articulação entre os vários níveis de prestação de cuidados e entre as várias equipas de CP. Nesse sentido, tenho de destacar a excelente articulação que a nossa equipa mantem com a equipa comunitária de cuidados paliativos, permitindo que as respostas assistenciais nesta área estejam cada vez mais direcionadas às necessidades dos doentes e famílias, com aumento da qualidade dos cuidados prestados e com ganhos evidentes na qualidade de vida das pessoas.

Temos dificuldade em lidar com a morte e também com o luto, sobretudo o dos outros. Porquê?
Falar da morte é ainda um tabu, pois causa desconforto e angústia. Estas dificuldades estão associadas à incapacidade de reflectir e aceitar a própria finitude. Sabemos que vamos morrer, mas na verdade não pensamos nisso como uma realidade próxima. A verdade é que, cada vez mais, as doenças incuráveis, graves e progressivas afectam pessoas jovens e isso leva a sociedade a confrontar-se com a morte precoce. É necessário falar da morte e do processo de morrer, refletir sobre o sentido da vida e o propósito da nossa existência, é preciso aprender a viver, pois só apendendo a viver, aprendemos a morrer. Já o luto do outro afecta-nos, pela incapacidade de lidar com esse sofrimento e pela projecção que fazemos de nós próprios aquando a perda do outro. É um sofrimento espelhado, pois reflecte-se em nós próprios. É por isso que a formação especifica em cuidados paliativos é uma necessidade e uma exigência quando se cuida de pessoas em fim de vida, pois aprendemos estratégias que nos permitem o afastamento necessário das situações, sem comprometer a eficiência do cuidar.

Para si, o que define um bom profissional de enfermagem?
Para além da competência técnica e do conhecimento científico e prático, um bom profissional de enfermagem é aquele que se preocupa em proporcionar o maior conforto possível aos doentes e consegue criar uma relação de ajuda com eles e com as suas famílias, de tal forma significativa, que perdura na memória durante muito tempo.

Numa frase, o que significa a Enfermagem para si?
Enfermagem é ser, acompanhar, pensar, acontecer e transformar – é o compromisso de fazer a diferença na vida de todos aqueles que necessitam de nós.

Leia também...

“No Reino Unido consegui em três anos o que não consegui em Portugal em 20”

João Hipólito é enfermeiro há quase três décadas, duas delas foram passadas…

O amargo Verão dos nossos amigos de quatro patas

Com a chegada do Verão, os corações humanos aquecem com a promessa…

O Homem antes do Herói: “uma pessoa alegre, bem-disposta, franca e com um enorme sentido de humor”

Natércia recorda Fernando Salgueiro Maia.

“É suposto querermos voltar para Portugal para vivermos assim?”

Nídia Pereira, 27 anos, natural de Alpiarça, é designer gráfica há seis…