Em menos de dois meses, mais de 40 espécies de aves diferentes já foram avistadas – e fotografadas – no “Abrigo Salgueiro Maia”, um posto de observação implementado num terreno da ex-Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Santarém, pelos fotógrafos José Freitas, Joaquim Nunes e João Mexia.
Une-os a paixão pela fotografia e pela natureza, que não se cansam de divulgar. Pediram autorização à autarquia, contaram com a colaboração do Rugby Clube de Santarém e, com recurso a materiais reciclados e “improvisados” construíram este abrigo onde passam horas a fotografar.
A par do abrigo, colocaram planos de fotografia com espelho de água para servir de bebedouro às aves, colocam regularmente comida nesse novo local e já espalharam mais de 20 caixas para nidificação.
Em troca, têm o privilégio de observar o comportamento destes animais no seu habitat natural a uma distância relativamente curta. A ideia, no futuro, é “contagiar” outros amantes de fotografia de natureza e público em geral, sempre como pano de fundo a necessidade da preservação da avifauna.
Joaquim Nunes conta ao Correio do Ribatejo que a ideia de construir o abrigo ‘Salgueiro Maia’ foi uma ideia de José Freitas: “em boa hora o fizemos”, relata.
“Em cerca de dois meses, já avistámos mais de 40 espécies. É obra para um tão curto espaço de tempo”, diz, orgulhoso, Joaquim Nunes, que colaborou ainda na construção de um outro posto de observação, nos terrenos do Centro Nacional de Exposições e Mercados Agrícolas (CNEMA).
“O José [Freitas] já fotografava por estes terrenos e percebeu-se que havia aqui a possibilidade de haver uma grande diversidade em termos de espécies, o que se comprovou. Talvez por ser um local mais isolado, por ter alguma protecção, acabamos por ter a sorte também de ter acertado com o local”, acrescenta o oficial da GNR na reserva.
Segundo conta, a paixão pela fotografia foi-lhe incutida por José Freitas: “comecei a fotografar com a máquina e a lente dele e, aos poucos, esta paixão foi-se interiorizando e crescendo e acabei por comprar o meu material. Agora, sou também um ‘aficionado’ destas ‘coisas’ da fotografia das aves e sou um companheiro do Zé, tanto na construção dos abrigos como, muitas das vezes, em campo aberto. São formas de fotografar distintas, mas ambas dão um prazer imenso”, relata.
Também João Mexia começou com a fotografia de aves por influência do amigo José Freitas: “eu já sabia das qualidades dele como fotógrafo e passou a ser meu amigo. De forma que começámos a fotografar juntos”, explicita.
João Mexia já fazia fotografia, mas de uma forma mais esporádica. No terreno junto à sua casa, no Vale de Santarém, havia construído mesmo um “protótipo” de abrigo, que não estava a surtir os efeitos desejados.
“Não estava a ter grande sucesso. Primeiro, não estava virado para Norte, como mandam as regras”, diz João Mexia. Mais tarde, com a ajuda de José Freitas, o abrigo foi reformulado e, agora, encontra-se em “pleno funcionamento”.
“No Vale, foi o aproveitamento de um espaço que eu já tinha, mas que estava virado a Sul. Ora isso não é nada conveniente para fotografar as aves e decidimos fazer um novo, de raiz, já virado a Norte. E foi aí que começámos”, acrescenta.
“Com a abertura daquele abrigo, que baptizámos de ‘Trepadeira’, surgiu a ideia de fazer na EPC um outro, porque ele já conhecia a zona. Tinha feito várias incursões fotográficas e apanhado algumas espécies que não eram avistadas tanto no abrigo do ‘Faroleiro’ como no outro, do CNEMA”, afirma.
“Temos tido algum sucesso e estamos muito contentes. Está a valer a pena. Aqui, já apanhámos um Saca-Rabos e temos esperança de apanhar uma Ginete.”, remata.
Segundo conta ao Correio do Ribatejo, a sua família apoia-o neste seu hobby e, inclusive, o seu neto mais velho, que mora em Lisboa, acompanha-o quando vem a Santarém passar férias.
“Gosta de ir comigo ao abrigo fotografar e interessa-se pelas aves e pela sua protecção”, diz, com orgulho, revelando que, para si, fotografar representa “eternizar momentos que, gravados em cada uma das fotografias, mostram a paixão que nutro pela arte de captar a natureza. É guardar o que vemos em determinado momento e partilhá-lo com os outros. É uma forma de transmitir o que sinto, o que também me move. Adoro a fotografia em todas as suas vertentes, mas fotografar a natureza é qualquer coisa de fascinante, principalmente as aves.”
Paixão e preservação da natureza
José Freitas faz da fotografia a ocupação dos seus tempos livres. Fá-lo por paixão, como meio de divulgar a natureza e contribuir para a sua preservação.
“Quando em 2012 passeava pelo campo à procura de boa luz para fotografar e me cruzava com aves que desconhecia, gostava de as ver mas não tinha equipamento para as fotografar. Acabei por comprar uma teleobjectiva e os passeios no campo transformaram-se rapidamente em jornadas de “caça” para as registar. Daí à quase obsessão de fotografar espécies novas, de as conhecer, aprender sobre elas e sobretudo compreender que têm de ser protegidas, foi uma curtíssima viagem”, revela.
Daí à ideia de começar a construir este tipo de abrigos, foi outro passo: “eu fotografava na zona e percebi as potencialidades. Decidi pedir autorização à Câmara, para construir a estrutura, que acedeu prontamente. Reunimos material e metemos mãos à obra, tudo com material reaproveitado e reciclado”, refere.
Exemplo disso, são os pratos de duas antenas parabólicas que foram adaptadas como um funil para captar água da chuva para dois depósitos.
Segundo explica, este tipo de abrigos para observação e registo de imagens de aves, deve estar virado a norte, ter um fundo bem afastado, esconder quem está dentro da estrutura para evitar que as aves vejam o fotógrafo.
Depois, vem a alegria de estar a contribuir “para que mais pessoas conheçam e se surpreendam com a nossa maravilhosa avifauna”.
Para o fotógrafo, melhor maneira de proteger “não é com palestras”, mas sim “mostrar às pessoas aquilo que existe e, quando elas conhecem e gostam, aí, sim, protegem. Não vale a pena andar a meter medo com ameaças que não vemos ou com problemas – que existem – mas não nos afectam directamente”, afirma.
“Eu tenho um caso muito concreto de um pescador que me dizia que, cada vez que via uma águia-pesqueira, ou uma outra ave qualquer, a mergulhar no rio e a capturar peixe, me dizia que era para matar porque comia o peixe…”, conta.
“Eu acabei por imprimir uma série de fotos da águia-pesqueira, ofereci-lhas e ele passou a olhar para o animal de outra forma. Depois, houve um dia em que me telefonou a avisar que tinha resgatado uma do rio, porque estava ferida… Ou seja: ele teve que perceber que aquele animal não constituía nenhuma ameaça para ele. Portanto, as pessoas têm que conhecer e, assim, gera-se uma empatia que as leva a querer proteger. Só se consegue proteger quando há proximidade. É a minha convicção”, indica José Freitas.
Preocupado com as “verdadeiras questões ambientais”, José Freitas alerta que, actualmente, cada vez há mais desmatação e menos protecção natural para as aves e outros animais. Por isso, ele e os companheiros de fotografia têm instalado vários ninhos nos abrigos: “no fundo, estamos a colmatar um erro, que é a retirada de espaço de nidificação”, refere.
Para o fotógrafo, o Ribatejo é ainda uma “zona riquíssima” em termos de biodiversidade, que convém conhecer e defender: “É o principal habitat da águia-pesqueira, uma invernante que está extinta em Portugal como nidificante”, explica.
“Os últimos Censos feitos na Península Ibérica indicam precisamente que o Tejo e o seu Estuário são a zona mais importante para estas aves passarem o Inverno. só isso já devia ser razão suficiente para que houvesse algum estatuto de protecção, mas não há”, lamenta.
José Freitas não tem dúvidas que deviam ser tomadas medidas concretas e urgentes para salvaguardar este património natural colectivo.
“A única zona protegida que existe é o Boquilobo que está nas mãos de um ou dois vigilantes que ainda têm que repartir o trabalho com Serra D’Aire”, aponta.
“Numa situação normal, diz, aquela reserva, que desde 1981 é considerada pela UNESCO como Reserva da Biosfera, teria de ter mais de uma dezena de pessoas a olhar por ela”, aponta.
“Esta foi a primeira área portuguesa a integrar a Rede Mundial de Reservas da Biosfera, sendo reconhecida como uma amostra representativa de um ecossistema terrestre onde se procuram formas de conciliar a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável. Convém actuar mais assertivamente para a sua preservação”, apela.
Para além de fotografar a biodiversidade que nos rodeia, José Freitas também escreve sobre ela. Recentemente, lançou o livro “Aves no Ribatejo”, uma obra de fotografia de aves onde existiu o cuidado de escolher as fotos que permitam “identificar claramente a ave e com isso dar a conhecer o nosso património natural, esperando que sirva para ajudar à sua conservação”.
“Espero que este livro contribua para a criação de uma certa consciência na sociedade sobre a necessidade de conservar as nossas aves selvagens e os habitats que lhes permitem sobreviver”, diz.
De facto, segundo refere, a maior parte dos factores que ameaçam as populações de aves são, pelo menos parcialmente, de origem humana. A expansão da agricultura e da aquacultura representam os maiores riscos.
“Este é, pois, o principal motivo que me move a fotografar a natureza, a possibilidade de contribuir para a sua protecção”, conclui José Freitas
Aves em Portugal estão a decair por causa da acção humana
As aves marinhas e dos campos agrícolas estão a morrer em Portugal, com perdas de populações que chegam aos 80% na última década, alertou, na passada semana, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA).
Em comunicado, a SPEA afirma que “a degradação dos meios rurais e a intensificação da agricultura coloca muitas espécies em queda livre”, enquanto outras actividades humanas como “a captura acidental nas pescas e a poluição luminosa” afectam especificamente as aves marinhas.
No relatório O Estado das Aves em Portugal 2019, a SPEA salienta que aves dos meios agrícolas como o pardal, o pintassilgo, a rola-brava, o picanço-barreteiro, a águia-caçadeira e o sisão mostram “declínios dramáticos (de 49% a 80%)” nos últimos 10 a 15 anos.
Em espécies marinhas que habitam oceanos e orla costeira, regista-se uma diminuição de 25% nos últimos cinco anos da galheta das Berlengas e veem-se cada vez menos pardelas-baleares, pilritos-das-praias, tordas-mergulheiras e alcatrazes.
Para a SPEA, salva-se uma “nota positiva” que é “a eficácia das acções de conservação da natureza”, com aves como o priolo e a cagarra nas Berlengas a recuperarem população e a estabilizarem.
“O priolo, ave que apenas existe na ilha de São Miguel, nos Açores, e que no início deste século era uma das aves mais ameaçadas da Europa, conta agora com uma população estável em torno dos 1.000 indivíduos”, assinala a SPEA.
O presidente da Sociedade, Domingos Leitão, defendeu que é preciso “investir muito mais dinheiro da Política Agrícola Comum na gestão adequada dos sistemas agrícolas extensivos, como os mosaicos de cereal e pousio e os olivais tradicionais”.
A política agrícola actual é “perigosa” por causa da expansão da agricultura de regadio intensivo, de monocultura e com uso alargado de agro-químicos, salienta a SPEA.
No relatório aponta-se ainda a ameaça de espécies invasoras introduzidas em Portugal por acção humana, como o arcebispo e ganso-do-egipto, que poderão tirar “espaço e alimento” às aves nativas.