A pandemia de COVID-19 entrou de rompante nas nossas vidas e virou muitos planos do avesso. Das viagens que nos pareciam banais até aos grandes planos de férias de verão, tudo se desfez ou adiou. As linhas onde escrevíamos planos de futuro entortaram.

Refeitos do choque inicial, tentamos agora escrever direito sobre linhas tortas. Se o SARS-CoV-2 nos impede de planear ir para longe, fiquemos por perto; se é incerta a vida na praia, rumemos ao interior. A vontade de retomar um rumo contornando a pandemia está a fazer com que muitos portugueses ponderem lançar-se na aventura de conhecerem o Portugal de escassos turistas e raros… portugueses. Vila Viçosa é um bom ponto de partida.

Não é só a imponência arquitetónica e cultural do Paço Ducal, não é só a gastronomia alentejana e não são só os mármores: Vila Viçosa tem um simbolismo próprio que lhe dá um relevo especial nesta altura. Os primeiros casos de Gripe Espanhola registados em Portugal em 1918 ocorreram em Vila Viçosa. Foi o início de um calvário para o nosso país, que não teve comparação em todo o século que se seguiu. Uma devastação que expôs as fragilidades de um país sem infraestruturas e com cerca 2/3 da população analfabeta.

O vírus influenza, causador da Gripe Espanhola, expôs, com crueza, o contraste entre o país real e o país dos ideários: a recém-implantada República dava os primeiros passos para uma reforma do sistema educativo, onde a recém-deposta monarquia tinha falhado, tal como falhara na modernização científica e tecnológica do país, fragilizando o império. A importância da ciência era, no entanto, pública e reconhecida.

No Paço Ducal de Vila Viçosa, a chamada Sala das Virtudes tem ilustradas oito virtudes fundamentais; para além das sete clássicas (castidade, caridade, temperança, diligência, paciência e benevolência), tem uma oitava que ombreia com as restantes: a sabedoria/conhecimento. A eleição desta oitava virtude não foi espúria; em Vila Viçosa chegou a haver um observatório astronómico e chegou a ser autorizada pelo Papa a instalação de uma universidade.

A monarquia não foi consequente com o seu louvor à oitava virtude e a brevidade do ideal republicado não lhe permitiu prosperidade. O Estado Novo seria mais um longo adiamento. Tardou a cumprir-se a oitava virtude em Portugal. Cem anos depois da passagem da Gripe Espanhola, em 1918/1919, temos a passagem de uma nova pandemia e nunca tanto se esperou da oitava virtude como agora. É tempo de escutar as histórias que Vila Viçosa guardou em solidão e tem agora para contar.

Miguel Castanho – Investigador em Bioquímica

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