Pouco passava das oito e meia da manhã, naquele dia de setembro, quando entrei no nosso gabinete de trabalho, situado no canto esquerdo do pequeno jardim interior do edifício dos Paços do concelho.

O Carlos Abreu tinha começado não havia muito tempo a trabalhar na Administração Regional de Saúde e normalmente aquele período matinal, entre as oito e meia e as nove e meia era o que tínhamos para trocar impressões, tomar decisões e orientar o serviço para o resto do dia. Havia, pois, que aproveitá-lo bem
Já lá estavam o Carlos Abreu, o Alfredo Pinheiro e a Cidalina Silva que nos secretariava administrativamente. O ambiente era pesado e mal responderam aos joviais bons dias que lhes desejei. Surpreendido, questionei o que se passava. Não havia sequer vontade de falar, até que o Carlos Abreu, num assomo lá esclareceu: – O Botas mandou parar tudo!


As palavras caíram como bombas no ambiente mais do que pesado e a minha conhecida boa disposição matinal esfumou-se sem que eu percebesse para onde. O Botas mandou parar tudo!
Mas como? Estávamos a pouco mais de um mês do inicio do festival, compromissos estabelecidos com regiões de turismo e municípios, apoios do estado já contratualizados, patrocínio garantido também, pessoal contratado para o serviço de mesa para o grande salão de gastronomia regional, equipa de cozinha já organizada, espaços de artesanato e tasquinhas atribuídos e comprometidos com os diferentes parceiros e participantes…
Que fazer?
E as palavras do Carlos abreu, continuaram a ressoar dentro de mim acutilantes, absolutas, sem espaço para hesitações ou duvidas: – O Botas mandou parar tudo!

Se o ambiente já era á minha chegada, bastante depressivo, a sensação de perda ainda se acentuou mais.
Bem tentou o Pinheiro colocar algumas alternativas e a Cidalina Silva alegrar o ambiente, o Carlos abreu limitava-se a cofiar o bigode (era mais puxar por ele), emitindo uns sons inteligíveis, sem articular uma resposta entendível.

Rente ás nove horas daquela manhã, a porta de acesso para o jardim, foi subitamente aberta com estrondo. Nenhum de nós precisou de olhar para saber que era o Manuel Castela que chegava. Ficou parado na porta a olhar, antecipando que havia coisa no ar. E perguntou com a sua voz grave e bem colocada: – O que é que se passa?

Finalmente o Carlos abreu levantou os olhos do papel onde fazia garatujas com uma esferográfica e repetiu aquela frase assassina:

O Botas mandou parar tudo!
A resposta não se fez esperar. – O Quê? Ele está cá? Sim, está no gabinete. Chamou-me cá ás oito da manhã para me dizer isto e ficou lá a trabalhar.

Eu vou já tratar disto, respondeu o Manuel Castela e virou costas a caminho do Gabinete do Presidente da Câmara e o Carlos Abreu atrás dele e eu atrás do Carlos Abreu.

Na época, o gabinete do Presidente da Câmara era no rés do chão, um gabinete cumprido e relativamente estreito, ao fundo do qual estava a secretária, sobre a qual trabalhava o Presidente Botas.
O Manuel Castela atirou logo da porta: – Tu és como os burros. Tens uma pala de cada lado e não vês mais nada! E dizendo isto colocava as mãos uma de cada lado da cara, como se fossem palas dos animais de tiro.

Lá no fundo o presidente Botas levantou os olhos e indagou –O que é que se passa Manuel? – Já te disse, és como os burros! Só vês para a frente. Então tu mandaste parar o festival? Como é que te atreves? A única coisa digna de destaque que podes deixar á gerações vindouras! E continuou a argumentar, como só ele sabia fazer.

Quando finalmente parou para respirar, o Presidente Botas levantou-se da secretária, olhou-o fixamente e girando os dedos da mão direita num gesto muito seu que terminava com o polegar erguido respondeu: – O Manuel eu apenas disse que era preciso controlar os custos!…

Silêncio. Eu saí da sala com o Carlos Abreu e o Manuel Castela ficou lá com o Presidente Botas.
Dias antes, num final de dia, o Carlos Abreu tinha aparecido por volta das seis da tarde e pediu-me que ficasse com ele à espera do Presidente Botas. Quando lhe perguntei o que se passava explicou-me que estávamos no fim do mês, não havia dinheiro para os ordenados e o Presidente Botas tinha ído para Lisboa tentar a antecipação de um duodécimo para resolver o problema. Chegou pouco depois das sete da tarde, saíu do velho mercedes, olhou e, com os olhos razos de água abraçou o Carlos Abreu. Tinha conseguido.
Só uma amizade e um respeito, tão profundos e cristalinos como os que eram partilhados por aqueles dois homens o Manuel Castela e o Presidente Ladislau Botas, poderia permitir uma tal troca de palavras e sobreviver e até fortalecer-se, como aconteceu. Aqueles não eram tempos nada fáceis.

Mas o Festival salvou-se.

(Continua na próxima edição)

Artigo de Nuno Domingos, publicado na edição impressa de sexta-feira, 22 de Janeiro de 2021, do Correio do Ribatejo

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