Manuel Coelho é uma das vozes mais emblemáticas da Orquestra Típica Scalabitana, grupo que integra desde 1981. Quase meio século depois, será homenageado no palco da “sua casa”, o Teatro Taborda, com um concerto que revisita os temas que eternizou ao longo dos anos. Solista, elemento do coro, vice-presidente da direcção e verdadeiro “homem dos sete instrumentos”, Manuel Coelho é um rosto indissociável da história viva da OTS. Nesta entrevista, recorda o início do percurso, destaca o papel invisível que sustenta cada espectáculo e projecta os desafios do futuro.
Entrou para a Orquestra Típica em 1981, por intermédio de Armando Paulo. O que é que o levou, na altura, a dizer “sim”? E que memórias guarda desses primeiros momentos?
Sim, foi em 1981 que tudo começou. Já gostava de música portuguesa, especialmente virada para o fado, e foi o Armando Paulo — com quem tinha uma ligação de amizade, até por via das nossas esposas — quem me levou a conhecer o mestre António Gavino. Depois de me ouvir, o mestre disse: “Vamos lá ver o que conseguimos fazer de ti.” Foi o primeiro passo. A partir daí passei a integrar a Orquestra e a minha estreia oficial aconteceu nesse mesmo ano.
Comecei por identificar-me com as vozes que ouvia na Orquestra, onde o fado já tinha lugar através da Dilma Melo. Era um tipo de música que me dizia muito e que senti que podia interpretar.
São 44 anos de ligação à Orquestra Típica Scalabitana. Um percurso que atravessa gerações, hábitos culturais e formas de fazer espectáculo. Quais foram, para si, os grandes pontos de viragem do grupo? E o que é que se manteve intocável nesta identidade scalabitana?
O que se manteve sempre intacto foi a identidade musical da Orquestra. A característica própria da música que apresentamos e a forma quase científica como os mestres — desde o saudoso António Gavino até ao actual maestro — conseguem pegar em temas que são considerados populares e dar-lhes uma roupagem única, que marca o som da Orquestra.
Essa capacidade de transformar e elevar o repertório, sem perder a ligação às raízes, é o que define a nossa identidade. Seja num registo mais leve, seja no fado, há uma sonoridade que é só nossa e que se manteve ao longo de todos estes anos.
É conhecido como uma das vozes mais marcantes da Orquestra, tanto a solo como no coro. Como é que se constrói uma voz “da casa” ao longo de décadas? Técnica? Disciplina? Ou é, sobretudo, uma questão de ligação emocional?
É, sobretudo, emocional. Claro que há disciplina, há esforço, mas o que me move é a ligação afectiva à música e às pessoas que fazem parte da Orquestra. Sempre me identifiquei com o repertório e com o ambiente humano do grupo. Criam-se laços fortes. Há quem esteja mais presente, quem partilhe mais momentos, ensaios, palcos, e isso acaba por gerar uma cumplicidade musical.
Ao longo dos anos, fui-me ligando a determinadas pessoas com quem partilhei experiências intensas — e isso também se nota em palco. Quando se canta com o coração, a técnica vem por arrasto.
Além do palco, também já assumiu responsabilidades na direcção e em tarefas menos visíveis — desde a montagem de palcos ao apoio logístico. Como é que tudo isso se organiza nos bastidores da Orquestra Típica Scalabitana?
Sim, ao longo dos anos, estive envolvido quer na direcção do Círculo Cultural, quer da própria Orquestra. Mas há um lado muitas vezes invisível que é absolutamente essencial: a logística. Montar um concerto da Orquestra Típica não é simples — e felizmente somos hoje mais de 50 elementos em palco.
Nem sempre as condições dos espaços são as ideais, por isso temos de improvisar, adaptar, encontrar soluções para garantir o som e a apresentação que nos caracteriza. Há uma equipa de trabalho — quase sempre os mesmos — que assegura a montagem do palco, do som, e tudo o que é necessário para que, quando os músicos entram, tudo esteja afinado.
É um esforço voluntário, mas feito com dedicação. Muitos dos nossos elementos conhecem bem os equipamentos e sabem o que é preciso para manter a fidelidade sonora da Orquestra. Tudo isso exige muito mais do que se vê da plateia.
Olhando para o futuro da Orquestra Típica Scalabitana, quais são hoje as maiores urgências e oportunidades? E que projecto gostaria de ver concretizado nos próximos anos?
Sendo uma orquestra amadora — no verdadeiro sentido do termo —, o nosso maior capital é a paixão com que fazemos isto. Ninguém recebe nada, à excepção do maestro, como é natural. Mas todos damos o nosso tempo e energia para que os projectos avancem.
O próximo grande desafio será a retribuição do encontro de orquestras, que realizámos recentemente e foi uma experiência fabulosa. Reunimos as quatro orquestras típicas nacionais ainda em actividade. Mas há mais em perspectiva: está a ser pensado um projecto para levar a Orquestra até à Ásia. Ainda está em fase de planeamento, mas há condições para que se torne realidade. Já tivemos uma experiência parecida em Macau, num encontro mundial, e foi algo memorável — estivemos com orquestras de todo o mundo, da Europa à Ásia.
Claro que tudo isto implica apoios. Felizmente, temos contado com o apoio da Câmara Municipal de Santarém, que tem sido importante, sobretudo em questões logísticas e de transporte. Mas há também outras entidades que colaboram connosco, muitas vezes de forma discreta, e que são essenciais para manter viva esta estrutura.
Quanto ao futuro, temos hoje muitos jovens connosco — alguns com 12, 13 anos — e com enorme talento. É um alento para a continuidade. Claro que, quando partem para o ensino superior, a disponibilidade diminui. Mas mesmo assim, fazem o esforço de vir aos ensaios e manter-se ligados. E isso diz muito.
