Santarém está a assinalar os 48 anos da Revolução dos Cravos com um vasto programa de actividades, que tiveram início a 2 de Abril e se prolongam até dia 18 de Junho. Do programa, faz parte um rol de iniciativas, que inclui concertos, arte urbana e cinema, entre outros, que pretende tocar, de forma transversal, a comunidade escalabitana, “na reflexão em torno dos temas de Abril e da Liberdade, mas também colocar estas preocupações nas agendas políticas, sociais, educacionais, económicas e culturais da nossa sociedade e potenciar a oportunidade que se abre a Santarém de afirmando as causas que a revolução nos trouxe, potenciar a sua notoriedade e o seu consequente desenvolvimento”.

Santarém está a assinalar Abril. O que esteve subjacente à construção do programa para marcar a efeméride?
Importa ter em conta o desígnio já projectado há cerca de dois ou três anos, de se promoverem as comemorações do 25 de Abril, numa lógica de crescendo até 2024, ano em que celebraremos meio século de liberdade. Este ano, aproveitando os constrangimentos impostos pela pandemia, a associação cultural Comemorações Populares do 25 de Abril, foi reunindo semanalmente e discutindo o desenho dos actos de celebração a desenvolver. Eu, após ter tomado posse como vereador e me ter sido delegado o pelouro da cultura, passei a acompanhar estes trabalhos, nessa qualidade.
O que foi consensualizado entre todos foi que a celebração deveria abraçar uma dimensão mais abrangente, nomeadamente procurando tocar de forma transversal a comunidade escalabitana, na reflexão em torno dos temas de Abril e da Liberdade; mas também colocar estas preocupações nas agendas políticas, sociais, educacionais, económicas e culturais da nossa sociedade e potenciar a oportunidade que se abre a Santarém de afirmando as causas que a revolução nos trouxe, potenciar a sua notoriedade e o seu consequente desenvolvimento.
Este conjunto de princípios, remete-nos para um plano de acções que acontecendo em diferentes momentos do ano, se possam repetir, mas de forma sempre diferente e articulada, onde a cultura, a arte e a criatividade tenham um papel de relevo e de constante intervenção.

Que momentos destaca?
Na programação deste Abril, coerentemente com o que acabo de referir e no que diz respeito a novidades, destaco desde logo o envolvimento das vilas do concelho, numa nova acção dada ao ABRILARTE. Até aqui um espectáculo, foi transformado num projecto de itinerância, com acções a decorrer em Alcanede, Amiais de Baixo, Alcanhões, Tremês, Pernes e Vale de Santarém, mas também em Abrã e Póvoa da Isenta que se quiseram juntar. Ainda a este respeito, um ciclo de contadores estão nas escolas, em cerca de uma vintena de intervenções, envolvendo cinco centenas de crianças do pré-escolar e do 1.º ciclo. Tudo isto com a participação maioritária de criadores artísticos do nosso território.
Destaco também, como corolário da programação de cinema deste mês, a antestreia do filme de Sérgio Graciano “O Implicado”, referindo com orgulho, ser uma produção de uma empresa de Santarém, liderada por José Gandarês e numa organização do Cineclube da cidade. Também a programação de espectáculos quer do Teatro Sá da Bandeira, quer do Convento de São Francisco estão indelevelmente marcadas por este desígnio temático.
Naturalmente que os momentos mais significativos, se centram no dia 3 de Abril, assinalando-se este ano 30 anos sobre o dia em que Salgueiro Maia deixou o nosso convívio; o dia 24 com a Arruada de palhaços, promovida pelo Veto teatro Oficina e o grande espectáculo da noite, este ano com Fernando Tordo e Fado Bicha e as celebrações do dia 25 de Abril. Aqui quisemos sublinhar a dimensão de festa, com as Filarmónicas a desfilar pelas ruas da cidade, convidando todos e todas para o momento solene junto à estátua do nosso eterno capitão. Depois, será o convívio do almoço, a arte urbana, a marcha pelo futuro a caminho da Igreja da Graça e o grande e anual Encontro de Coros, numa organização do Coro do Círculo Cultural Scalabitano.

O papel de Santarém na Revolução de Abril deveria ser mais vincado do que o que é actualmente?
Tendo em consideração tudo o que o movimento dos capitães nos legou, o que fizermos, por muito que seja, será sempre pouco para os saudar, para manter viva a sua memória e o seu exemplo, e, sobretudo para criar condições para que ninguém se sinta autorizado a pôr em causa as conquistas que nos ofereceram. Celebrar Abril, terá sempre de ser muito mais do que evocar o seu exemplo. Há que fazer dele mote de reflexão permanente e de atenção a tudo o que está a acontecer. Ou, para fazer minhas as palavras de Salgueiro Maia: “preocupem-se com aqueles que queiram destruir o que ajudei a construir”. Neste contexto, o papel de Santarém poder / dever ser mais vincado, será sempre um desafio para nós próprios e, claro, devemos sempre tentar que seja mais vincado.

Com o Museu de Abril e dos Valores Universais – MAVU, esse papel da cidade e da EPC ficarão mais sublinhados?
O MAVU é um projecto que saiu da proposta do coronel Correia Bernardo. Que o propôs ao Município de Santarém, que convidou um conjunto de amigos mais ou menos ligados à actividade cultural e museológica e com eles desenvolveu um plano museológico. De facto, o desígnio inicial era celebrar o 25 de Abril, os seus autores e a liberdade. Breve o projecto cresceu e alargou os seus horizontes, centrando-se num arco temático que se inicia com os valores propalados pela revolução francesa de 1789: Liberdade, Igualdade e Fraternidade e incorporando este percurso que nos conduziu à formulação dos capitães de Abril: Democratizar, descolonizar e desenvolver.
Espero, desejo e tudo farei para que este desígnio se concretize e que Santarém o consiga concretizar, numa afirmação de vida e vitalidade da construção cultural, social e política da cidade.

Nos aniversários do 25 de Abril fala-se muito de Salgueiro Maia. Acha que ele foi um injustiçado ao longo da sua vida?
Como afirmava há alguns dias António Sousa Duarte, no lançamento da sua obra “Salgueiro Maia – O Implicado”, livro que serviu de suporte ao filme “O Implicado”, actualmente em exibição nos cinemas, O 25 de Abril aconteceu mercê da acção consciente e abnegada de muitas pessoas. Que planearam, programaram e executaram uma acção, na época muito perigosa. Mas Herói! Herói só houve um: o Salgueiro Maia. E ele, o Maia, não era homem para perder tempo. Não tinha paciência para reverências, para conversa mole, como hoje se diria. E isso significou que muitas pessoas terão sentido os “calos apertados” e… Sim, considero que a justiça que lhe foi feita aconteceu depois de nos deixar.
No entanto, do que privei com ele, e isso aconteceu primeiro enquanto estudante, no comboio a caminho de lisboa e mais tarde, já a trabalhar no Município, na organização das Comemorações do 25 de Abril. Nunca o senti ressentido, ou pelo menos nunca o deixou transparecer. Era e É um Homem grande.

Este período da História de Portugal, na sua opinião, deve ser mais estudado e ensinado nas Escolas?
Esta consensualizada entre os historiadores a ideia de que é necessário um tempo razoável de afastamento dos factos, normalmente de trinta anos, para que se possa ter o necessário distanciamento que permita objectividade científica. Já passámos essa fase e estou certo de que este será um tema que irá ganhado estudiosos, e será progressivamente mais estudado nas escolas. A nós, testemunhas do tempo e dos seus eventos, cabe manter essa chama sempre acesa, alimentando saudavelmente a cultura de liberdade.

Como viveu o 25 de Abril e esses primeiros dias de Liberdade?
Eu tinha acabado de fazer dezanove anos. Levantei-me de manhã e dirigi-me à Escola Industrial e Comercial de Santarém, onde estudava. Ao chegar dei conta, demos todos, de que a parede frontal da escola tinha sido pintada. Depois de muito perguntar, alguém disse que o “Chambel”, (o director da escola), tinha sido acordado pelo segurança alertando que alguém tinha escrito umas palavras naquela parede e a tinha mandado pintar ainda durante a noite. Nunca soube o que lá tinha sido escrito. Não houve aulas e voltei para casa, onde encontrei a minha mãe a pintar o hall de entrada das escadas e surpreendida por me ver, me perguntou o que se passava. Breve estávamos com a rádio ligada a tentar perceber o que se passava. Depois, aconteceu tudo. As sessões de esclarecimento político na escola, com os professores mais informados a explicarem a origem da direita e da esquerda, a criação da associação de estudantes cuja direcção integrei com o Chico Graça, a Fernanda, o Carlos Ferreira, o Chona, o ano louco de espectáculos do Veto, nas campanhas de dinamização cultural do MFA e nessa organização, o contacto permanente com um homem que muito admiro, cujo convívio muito prezo e que é o Coronel Correia Bernardo.

A frase “Ainda falta cumprir Abril”, faz sentido para si?
Esta frase faz sempre sentido, pois a defesa da liberdade, da democracia, da descolonização e do desenvolvimento, pese embora as duas últimas com exigências que hoje têm novos contornos, têm de ser preocupações permanentes e continuadas. Falta e faltará sempre cumprir Abril, cada vez que nos desviarmos dos seus ideários. Falta e faltará sempre cumprir Abril, cada vez que olhamos para o lado perante comportamentos de racismo, xenofobia ou falta de respeito pelos direitos dos outros. Falta e faltará sempre cumprir Abril se em cada dia, não fizermos tudo o que estiver ao nosso alcance, para defender o bem supremo da liberdade.

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