Manuel Henrique Santana Castilho, ex-director da Escola Superior de Educação de Santarém e do seu conselho científico, assim como do Instituto Politécnico de Setúbal, analisa, nesta entrevista concedida ao Correio do Ribatejo, o estado actual da Educação no país, que tem levado milhares de docentes à rua em protesto pela revisão do regime de recrutamento, a progressão na carreira e a municipalização da contratação.

Colunista no Jornal Público e comentador convidado na CNN sobre pedagogia e outros temas relacionados com a Educação e a sua política, e com uma vasta obra publicada nesta área, Santana Castilho, considera que a política educativa que está actualmente a ser seguida “está muito longe de se adequar às necessidades do país”.

Muito crítico em relação ao ministro da Educação, Santana Castilho afirma que o governante “mais do que incompetente, tem sido pernicioso, porque contribuiu para que a escola de que o país carecia fosse desaparecendo todos os dias”.

Manuel Henrique Santana Castilho foi membro do VIII Governo Constitucional de Portugal como Subsecretário de Estado dos Assuntos Pedagógicos no Ministério da Educação e das Universidades. Foi também foi consultor do Banco Mundial, da União Europeia e da UNESCO e responsável por vários projectos internacionais de investigação educacional. Além disso, foi director de várias revistas, incluindo a “Revista ESES”, a revista semestral da Escola Superior de Educação de Santarém, de 1989 a 1992, e da revista de política educativa “Pontos nos ii”.

Como é que olha para o actual movimento de contestação de docentes?

Como reacção bem tardia, mas que algum dia teria de acontecer, à subordinação dos professores a uma engenharia de gestão que os anestesiou e mergulhou num limbo, onde cresceu demasiadamente o cansaço e a resignação. O desânimo que os submeteu radicou na impotência dos sindicatos para os defender das decisões tirânicas dos governos, desde o sinistro ministério de Maria de Lurdes Rodrigues.

Com efeito, desde essa altura, as lutas sindicais foram ficando aprisionadas pelos interesses das conjunturas partidárias e cada vez menos centradas na eficácia da defesa dos interesses profissionais dos seus representados. Nos momentos críticos, fugiram sempre de intervenções firmes, que provocariam as almejadas mudanças nas relações de poder.

Que estado de espírito encontra nos professores?

Vejo-os unidos, independentemente dos sindicatos a que pertencem ou de não terem sequer filiação sindical. Vejo-os autónomos, com uma capacidade de organização a nível das escolas, e vejo-os determinados a não cederem aos jogos sujos que começam a aparecer. Vejo-os, sobretudo, confiantes na razão que têm e determinados a prosseguir.

Que medidas deveriam ser tomadas pela tutela para que se encontrem soluções e equilíbrios?

Todas as que respondessem às justas reivindicações dos professores e das quais, em síntese, recordo as principais: Fim do desrespeito pela actividade docente, eminentemente intelectual e livre, e fim da transformação dos professores em simples operários vergados a obediências e desmandos de quem manda.

Recuperação do tempo para estudar e pensar, entretanto substituído pelo monstro da burocracia escravizante, personificada por plataformas e protocolos administrativos, concebidos por pequenos déspotas.

Retorno a um modelo de gestão das escolas, que antes era verdadeiramente democrático, removendo o actual sistema, predominantemente autocrático, onde o medo das represálias que as discordâncias acarretam se tornou o clima organizacional dominante.

Retoma da natureza axiológica da Educação, que foi paulatinamente substituída por regras de mercado, cada vez mais circunscritas a objectivos utilitários e instrumentais.

Abandono da proposta ministerial para alterar o regime de recrutamento e mobilidade dos professores, designadamente no que toca à selecção dos docentes por conselhos locais de directores e à substituição de quadros por mapas. Recuperação do poder de compra dos salários e não à remoção da habilitação profissional para o desempenho da actividade docente.

Não à perda do direito inaliável de escolher o local onde se trabalha e não à transformação do regime da Mobilidade por Doença num concurso canalha e desumano, que atirou para a sargeta da vida os professores mais frágeis e as suas famílias, negando-lhes direitos constitucionalmente protegidos.

Não ao roubo do tempo de serviço efectivamente prestado, não à desregulação sistemática dos horários de trabalho, não às vagas e quotas para progressão na carreira e não à iniquidade do actual modelo de avaliação do desempenho.

Até que ponto a política educativa do actual Governo se adequa às necessidades educativas do país e como avalia o trabalho que está a ser desenvolvido pelo actual ministro?

Deixe-me inverter as premissas da sua pergunta, começando por afirmar que a política educativa está muito, mas muito longe, de se adequar às necessidades do país. E a justificação resulta da avaliação que faço do que tem vindo a ser desenvolvido por João Costa, desde o tempo de secretário de Estado.

Sobra a evidência de que o trabalho de João Costa, mais do que incompetente, tem sido pernicioso, porque contribuiu para que a escola de que o país carecia fosse desaparecendo todos os dias. A palavra educação só devia evocar a ideia de evolução, que não de involução. Mas foram de involução os últimos sete anos.

Com efeito, a análise do discurso de João Costa, assente na retórica provinciana do “aluno do século XXI”, do “trabalho de projecto”, da “flexibilidade pedagógica”, do “trabalho em rede” e dos “nados digitais”, expõe uma mistura de lemas gastos com teorias pedagógicas que foram abandonadas porque falharam, depois de terem lançado a confusão no sistema de ensino.

Quando se junta hoje a melodia das “aprendizagens essenciais” ao estribilho da “flexibilidade pedagógica”, vemos o que a música de João Costa deu: um desconcerto nacional, particularmente para os que já chegam à Escola marcados pela sorte madrasta de terem nascido em meios desfavorecidos.

Porque a inovação pedagógica do aprender menos não remove o insucesso. Mascara-o. Porque os experimentalismos assentes no abaixamento da fasquia não puxam pelos que ficam para trás. Afundam-nos. Porque o escrutínio sério das políticas educativas de João Costa, que só um pensamento crítico livre de contaminações ideológicas permite, demonstra-o.

Das celebrações fátuas de João Costa sobressai a questão da educação inclusiva.

Ter todos dentro da mesma escola é um excelente princípio, que nenhum civilizado contesta. Mas não o concretizamos fingindo que determinados alunos podem dar respostas que sabemos que nunca poderão dar, pedindo do mesmo passo aos restantes que fiquem parados. É isto que João Costa tem promovido: uma exclusão dupla, mais gravosa ainda para os que nasceram diferentes.

João Costa tem vindo, laboriosamente, a desregular todo o mecanismo de avaliação do desempenho do sistema de ensino (anulando a comparabilidade dos dados recolhidos ao longo dos tempos), a desconstruir a estrutura curricular e a produzir normativos e formação em torrentes sobre o que deve ser feito no âmbito da autonomia das escolas, promovendo, assim, o mais hipócrita homicídio, à nascença, dessa mesma autonomia.

A Educação está tão desgraçada que dificilmente alguém a poderá desgraçar ainda mais.

Sendo muito crítico actualmente do Governo PS, para si quais foram os piores anos para a educação?

Os anos em que governou Maria de Lurdes Rodrigues e os anos dos governos de António Costa.

Tendo em conta a sua experiência como docente na Escola Superior de Educação de Santarém e o seu contacto próximo com a formação inicial de professores, que apreciação faz da formação que é ministrada nesta área em Portugal?

É uma formação genericamente pobre, em degradação continuada desde a convenção de Bolonha. Mas desenvolver o tema requeria um tempo incompatível com a natureza desta entrevista.

Para que serve, afinal, a escola pública?

A escola pública está a ser confrontada com caminhos que desprezam a sua natureza axiológica. A escola pública é cada vez mais tida como um local onde se prestam serviços circunscritos a objectivos utilitários e instrumentais.

Foi-se perdendo o consenso secular entre a família e a escola e esta e a sociedade em geral, quanto à orientação das gerações mais novas. A Escola não se realiza sem sacrifício, disciplina e trabalho. Mas, fora da escola, a indústria da comunicação e do espectáculo faz a apologia do prazer imediato, do consumo supérfluo, da extravagância e do efémero. Os pais deixaram de ser os aliados primeiros do professor na modelação dos filhos. Hoje, delegam neles todas as responsabilidades, mesmo as indelegáveis. E depois acusam e exigem.

Alguns batem nos professores. Em nome de direitos sociais, esperam que eles sejam, cumulativamente, pais e mães por delegação, educadores sexuais, ambientais, rodoviários e cívicos, médicos e psiquiatras e tudo o mais que o relativismo laxista em que caímos despeja na escola.

Afinal, para que devia servir a escola?

Definitivamente, para colocar um determinado acervo de conhecimento ao alcance dos alunos e assim cooperar num processo educacional mais vasto, que a extravasa.

À ideologia pedagógica que se apoderou do Ministério da Educação juntou-se, nos últimos anos, uma manipulação estatística que dilacerou o valor intrínseco do conhecimento, empobrecendo drasticamente a qualidade da escola de massas. A sobrevalorização dos processos por referência ao conhecimento, ditada por uma falsa doutrina de sucesso a qualquer preço, criou mesmo mecanismos perversos de discriminação social.

Boa parte da seriedade dos conteúdos foi condicionada por “aprendizagens essenciais” ou por actividades educativas sem substrato cognitivo. O resultado é evidente: os pais mais cultos e mais ricos ensinam ou pagam a quem ensine o que a escola não trata; os outros permanecem escravos da rua e da televisão. Este estado de coisas evidencia um erro clamoroso das políticas educativas dos últimos tempos: quando decidiram baixar o nível de exigência cognitiva, acreditando que lograriam assim motivar os culturalmente mais débeis, tão-só generalizaram a mediocridade.

Considera ser necessário repensar o modelo?

A resposta é sim e é corolário de tudo o que aqui disse.

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