Há 72 anos, a Declaração Schuman (1950) formalizou a reconciliação entre a Alemanha e a França dando início, com outros Estados que também se quiseram associar, a toda uma construção política sui generis assente em escolhas inéditas e ousadas, tais como a partilha de soberania e a procura de soluções colectivas para os problemas comuns, através de instituições supranacionais, do direito, da democracia e do comércio. Emblematicamente nascido a 9 de Maio – de 1937, em Santarém – exactamente o Dia da Europa, que também ajudou a construir, Pedro Canavarro acredita que existem múltiplas razões pelas quais devemos celebrar hoje a União Europeia. Ao longo de décadas, gradualmente, essas escolhas proporcionaram múltiplos benefícios, como o mercado interno, o Espaço Schengen, o euro, o grande alargamento ao Centro e Leste da Europa e, sobretudo, a paz dentro das suas fronteiras. Uma paz que é agora ameaçada pela ofensiva Russa na Ucrânia, que Pedro Canavarro vê como “um tempo que se faz pela dor”, um parto “terrivelmente doloroso” que se impõe face a uma nova reorganização geopolítica mundial.
Como é que olha para o momento actual da História em que vivemos?
Penso que é um período muito interessante. Sobretudo, se não procurarmos focalizar unicamente nesta crise muito dolorosa, e também muito significativa, que é a Guerra na Ucrânia. Neste plano, tenho que chamar à atenção para aquilo que, para mim, tem sido um sucedâneo de acontecimentos que nos levam até aqui.
O Séc. XXI começou com o derrube das torres gémeas. Essa foi a marca do início do século, e o início de um interregno na História. Este acontecimento foi de tal forma desconcertante que achei, imediatamente, que era princípio de qualquer coisa diferente. Como historiador, achei que estava a ter um enorme privilégio de entrar num interregno da História. Acredito que esse interregno terminou agora, com a Guerra da Ucrânia. Isso marca o início, realmente, e em profundidade, do Séc. XXI porque trás consigo enormes transformações… O que se passou durante estes 20 anos, entre 2001 e agora, foram um suceder de acontecimentos aos quais nunca pensei que tivesse o privilégio de assistir.
Durante aquele período, temos três eventos fundamentais: por um lado, nos Estados Unidos, nós sabíamos que um dia haveria um presidente de cor, o que aconteceu, sabíamos que viria um dia um Papa que se deveria afirmar como Bispo de Roma em primeiro lugar, do que Papa – e quando vejo o Papa Francisco, depois da sua eleição, aparecer na janela do Vaticano perante a multidão, ele afirma-se, prioritariamente, Bispo de Roma. Confesso que fiquei arrepiado o resto do dia. Nunca imaginei que poderia assistir a esse acto, porque esse acto simbolizava que podia haver, a partir daí, uma intercomunicação mais fácil. E mais espanta quando, ainda agora, vejo que ele tenta ir junto do patriarca Ortodoxo, em Moscovo, com ou sem Putin. E mais do que Francisco afirmar que é Bispo de Roma é afirmar – quando veio de avião do Brasil para Roma – “quem sou eu para julgar?”.
Depois disso, temos Putin a ocupar a Crimeia e ninguém diz nada: de certa forma, o mundo fica silencioso, porque havia tradições da Crimeia já ter sido terreno Russo e, como tal, ninguém reage…
São apenas três exemplos de coisas que se passam nestes 20 anos e que terminam num quarto, que é a Pandemia. Este é dos primeiros acontecimentos que envolvem o mundo global. O mundo procura curar-se, mas, nessa procura de cura, obriga os cidadãos a duas situações: que cumpram, isolando-se, confinando-se, e esse confinamento cria automaticamente o medo que está associado ao ponto de nos termos de refugiar em casa. Essa obrigação a que o cidadão fica submetido e esse medo associado a uma tecnologia muito desenvolvida e que também é global, foi um acontecimento avassalador. Acho, por isso, que quando terminar a Pandemia, de certa maneira, termina o interregno. Um interregno que nasce pela destruição e termina na ciência, da descoberta das medicinas, a uma velocidade nunca pensada, mas junto a uma cidadania oprimida que, para se salvar, tem que se fechar. Com o fim da Pandemia fecha-se o dito círculo.
Depois de fechado o círculo, o Homem está globalmente preparado para ser governado por quem?
Acredito que o ideal seria num governo global, já que estamos globalizados a vários níveis, mas penso que ainda é cedo para chegarmos aí. O global ainda não é plenamente possível, mas há as governanças regionais. O primeiro a assumir essa posição é Vladimir Putin, que se aproveita desta facilidade de as pessoas serem obrigadas a fugir, a terem medo, a seguirem aquilo que um homem, um autocrático, lhes manda. Invade e cria guerra num país que tem história comum com ele: uma parte da população, inclusive, fala a mesma língua, uma parte vive a mesma religião. Portanto, ele não está, senão, à procura do alargamento da sua própria integridade e a assumir, nessa sua extensão natural, aquilo que, para ele, é o seu mundo Russo.
Isto, como ele diz, é querer um Império. Como historiador, isto é extremamente interessante, porque o conceito de Império é Europeu e isso é facilmente perceptível se formos à história da Europa, que tem sido sempre o chão para as guerras, porque é imensamente rica na sua liberdade de confrontos de ideias e possibilita, a uns e a outros, o desenvolvimento do pensamento e a aplicação prática desse mesmo pensamento. Putin, ao contrário, de lá para cá – até porque para lá é tudo gelado – quer esse Império. Mas, dizia, o interessante é que a ideia de Império é uma ideia naturalmente existente na Europa. Desde o Imperio Romano, desde a Europa Cristã – e é preciso não esquecer que os Papas tinham os seus territórios – passando pelo Império de Carlos Magno, de Napoleão, de Hitler… houve sempre na Europa ocidental essa ideia. Também a Inglaterra criou o seu Império e até nós [Portugueses]. E tivemos também guerra porque não admitíamos a independência desses mesmos países que, um dia mais tarde, foram independentes. Orgulhosamente sós, defendíamos também o nosso Império. Pragmaticamente, o conceito de Imperio faz parte da mentalidade do Europeu, e a Rússia faz parte da Europa. Agora, Putin está a querer o Imperio quando eles já não existem. Já não podemos voltar atrás porque já avançámos com outros valores, como a democracia, as liberdades humanas e a justiça, que a Rússia não conseguiu integrar no seu contexto actual, embora tenha tido relações muito abertas para a Europa de então, como no século XVII, com Catarina a Grande, com casamentos que se faziam sempre com princesas alemãs e os Czares russos. Já para não falar em toda a intervenção tão notável no nível da intelectualidade, do bailado, da literatura: uma riqueza cultural que a Rússia, como Rússia, possui.
A guerra, seguida de uma pandemia, mostram, na sua leitura, que os mecanismos solidários europeus estão a funcionar?
Como já referi, acho que este é um período extraordinário… um tempo que se faz pela dor… este é um parto terrivelmente doloroso o que se está a passar na Ucrânia, mas, se calhar, é um parto que se impõe para uma nova reorganização geopolítica mundial.
Este é um tempo difícil de se viver, porque implica grandes responsabilidades e o nascimento de valores que até aqui não tinham sido suficientemente afirmativos. Como, por exemplo, o valor do patriotismo europeu. Sem essa pressão exterior – embora a União Europeia já levasse décadas de construção eu não sei se existiria. Agora isto nota-se nessa resposta, que é profundamente humanista, pesa embora ainda não seja a resposta suficiente. Este é um período que obriga, infelizmente, pela força de uma guerra, a levar o Homem para uma nova geopolítica mundial, na qual o continente Europeu e o Asiático estarão fatalmente condenados a dirigir mais o mundo do que, isoladamente, o continente Americano.
As bases culturais mais profundas estão na China – desde o pensamento de Confúcio e o Budismo – estão na India, com o hinduísmo, em Israel, com a cultura judaico-cristã e, na Europa, com as bases do pensamento Grego. Esses valores estão distribuídos pela Europa e pela Ásia.
Como ficará o Mundo depois desta Guerra na Ucrânia?
É um período de indefinição ainda. A grande questão é saber como se vai definir a articulação desses valores num mundo universal rodeado de uma tecnologia que a todos suporta… é uma interrogação difícil de responder. É um período de profunda transformação. A guerra impôs que a Europa respondesse quando estaria, talvez, demasiado adormecida no seu economicismo. E a guerra obrigou também a que uma organização criada para a segunda guerra mundial [NATO] estivesse novamente atenta e alerta, quando tinha perdido um pouco as funções desde que a União Soviética desapareceu.
Claro que, no meio disto tudo, não há vantagens para o povo Ucraniano: é terrível o sofrimento pelo qual está a passar, sendo que a resposta que tem dado neste confronto com uma grande potencia, como a Rússia, tem sido fantástica. Mas até onde é que todo este negativismo é fundamental para entrarmos num Séc. XXI com uma nova geopolítica, essa é a questão fundamental.
O projecto europeu está ameaçado? A tal ‘Europa dos Cidadãos’ é um conceito que se poderá materializar?
O projecto europeu não estava delineado para sofrer estas duas experiências – Pandemia e Guerra – uma seguida da outra – que foram e são tremendas na perturbação da vida das pessoas e na sua própria mentalidade. O projecto europeu foi feito para criar riqueza, tanto quanto possível, e para dar um sentido de unidade a uma Europa que nunca tinha tido essa unidade a não ser sob impérios, sob a força, e não por decisões livres das populações.
Vivemos sempre, desde o princípio, numa europa que, embora preocupada com os cidadãos, se identifica mais com a palavra ‘comunidade’ do que a palavra ‘união’. Creio que ainda não é uma europa de cidadãos. Continuam a ser os estados a definir os moldes em que a Europa actua. Daí, a União Europeia (UE) ter tanto receio dos referendos porque, muitas vezes, são contrários ás posições assumidas e há influências indirectas de responsáveis com benesses para que as propostas sejam aprovadas e essas políticas sejam concretizadas. A UE parece estar, nesta altura, muito unida: a guerra veio ‘ajudar’ em muito a Europa a assumir-se como união.
Acho que, neste momento, estamos mais unidos do que há uns meses atrás. Mas veremos, no dia em que acabe a guerra – e esperemos que seja rapidamente – se continuamos a querer, tanto quanto hoje, que a Ucrânia pertença à Europa. A Ucrânia pretende entrar numa Europa livre, mas essa Europa livre está muito condicionada pelos factores económicos. Está a servir também de suporte à outra parte americana, que se impõe, e da qual a Europa necessita na sua própria afirmação, seja militar como seja, também, como um intermédio para um novo plano Marshall aplicado, depois, na recuperação da Ucrânia.
É inegável, contudo, que tem havido uma melhoria de vida junto dos cidadãos europeus, mas acho que é sempre uma Europa em construção. E a esperança é que possa haver um maior bem-estar na vida das populações que compõem a Europa. Sobretudo os estados que compõem a UE, se tivessem tido a coragem, a abertura para dialogar e aprofundar a vantagem de uma Europa federal, creio que isso teria sido uma grande mais-valia e uma facilidade na resposta conjunta que era necessária dar agora à situação na Ucrânia.
Até agora isso não foi concretizado. É mais difícil saber onde está realmente o poder… só a Europa poderia criar uma União Europeia. Ou seja: só o espírito Europeu, um espírito Cartesiano, é que era capaz de pedir tempo para dar respostas, porque nós fazemos sempre tudo à volta da mesa. A mesa do café é uma instituição europeia.
O poder de decisão ‘à europeia’ depende de muitas conversações, o que é uma enorme vantagem, mas é também é um inconveniente no relacionamento com o outro porque sacrificam as respostas imediatas a dar. Daí que países não europeus, mas mais unitários na sua organização, procuram muito mais os acordos bilaterais do que os acordos com a UE.
Esteve no parlamento Europeu, que memórias guarda desses tempos?
Sempre gostei muito de política internacional. Desde miúdo, fazia sempre redacções sobre figuras políticas da época, Estaline, Churchill, figuras do meu tempo de estudante. A primeira viagem que faço ao estrangeiro, com 18 anos, com um grupo de três amigos, leva-me a Heidelberg na Alemanha, uma cidade preservada durante a Guerra. Na sua universidade realizava-se, nessa altura, o primeiro encontro franco-alemão de jovens após a guerra. E nós acabamos por frequentar o curso, em 1955, o primeiro encontro entre alemães e franceses.
Quem diria, nessa altura, que seria deputado dum parlamento europeu, mal se podia ainda imaginar tal coisa (risos). Fui o primeiro cidadão europeu a concorrer a eleições num país diferente do nosso, que foi o Italiano. Não era para ganhar – porque ninguém ganha com uma campanha de 15 dias – mas foi para demonstrar que era possível fazê-lo. Era uma Europa da Cidadania, que as Casas da Europa procuravam difundir desde Portugal até à Rússia, projecto que foi destruído, infelizmente, pela própria presidência da Comissão Europeia.
Que olhar tem sobre a evolução da Europa?
Eu acho impossível voltar atrás. E esta vivência comunitária obriga a que haja capacidade de gestão dos respectivos líderes, que defendo que que devem ser figuras emblemáticas ao nível da Europa porque traduzem o voto de milhões de europeus. Acho que a Europa deve ter uma preocupação de seriedade com o funcionamento das suas instituições e de fiscalização da aplicação dos seus fundos porque são inaceitáveis desvios para interesses partidários ou económicos específicos.
Há a possibilidade de articulação de fundos e apoios, mas há a necessidade de os governos cumprirem e serem sérios nessa aplicação porque custa caro ao cidadão e ele não se sente compensado. Daí, muitas vezes, afastar-se na abstenção para as eleições para o parlamento europeu. De todo o modo, reafirmo que é indiscutível que os cidadãos se sentem hoje mais europeus, e o melhor exemplo disso é o programa Erasmus, uma vivencia intercomunitária notável. É um programa fazedor de cidadãos europeus.
Que leitura faz dos movimentos populistas que estão a emergir?
É sabido que estes movimentos têm tendência a aparecer por uma falta de cultura mais humanística e isso leva-os a aperceberem-se que têm campo de manobra perante os desajustados, os desintegrados, em que o aprofundamento da democracia não se atingiu tanto quanto se desejava.
Há valores que não têm necessidade de ser discutidos. Esses movimentos, tanto de direita como de esquerda, fundamentam-se naqueles que estão em maiores dificuldades e se apresentam como ‘salvadores da pátria’ são, como tal, perigosos.
Poderá o projecto europeu estar em risco de alguma forma?
Espero que não, mas também as democracias não podem limitar a existência desses partidos. Acho que os cidadãos devem ter uma vivência democrática plena, informação, responsabilidades de afirmação cultural e identitária. São milénios de história e, como se costuma dizer, a história repete-se…, mas compete-nos, a todos, estarmos atentos de forma a não deixar que se repitam de forma tão regular… É necessária uma consciencialização e o aprofundamento de uma cidadania participativa, da qual, porém, estamos ainda longe.