A “Festa do Futuro” é um festival cultural e artístico que terá a sua primeira edição nos dias 21 e 22 de Setembro, na aldeia do Souto, Abrantes. O evento foi concebido para revitalizar a comunidade local, combatendo a desertificação e promovendo a auto-estima e identidade cultural da aldeia. Com uma programação participativa, o festival junta projectos artísticos contemporâneos e tradições locais, envolvendo a população da região. 

Como surgiu a ideia de criar a “Festa do Futuro” e qual foi a principal motivação por detrás deste projecto?

Durante os três primeiros anos da associação estudámos a região de Abrantes, falámos com as pessoas e com os projectos que aqui existem e começámos a pensar num projecto que fizesse sentido neste território que tem características únicas. 

Depois desta primeira fase de exploração decidimos começar o projecto “Inventar a aldeia” que é o projecto de intervenção no território. No âmbito deste grande projecto começámos por fazer um ciclo de conversas com a comunidade sobre o passado, presente e futuro do Souto a nível cultural. 

As conversas foram tendo cada vez mais pessoas e pessoas de todas as idades. Literalmente dos 8 aos 88. Essas conversas é que nos possibilitaram definir qual seria o trabalho concreto a fazer.

Nestas conversas as pessoas desenharam, contaram histórias, imaginaram e disseram o que gostavam de ter aqui. O que as pessoas mais referiram foi a questão da desertificação, com o passar dos anos a população foi diminuindo e, nos últimos 15 anos ainda mais, porque a escola fechou. Parece algo pequeno, mas é um evento que tem um grande impacto, principalmente num território do interior. Com o fecho das escolas, as crianças desaparecem e a aldeia esmorece ainda mais. As pessoas disseram-nos muitas vezes que a maior actividade era nos meses de Verão, quando vêm os emigrantes e as pessoas que moram nas grandes cidades. 

Na última sessão das conversas as pessoas disseram-nos que gostavam de ter projectos onde pudessem participar de forma mais activa e que gostavam de ver outro tipo de coisas, coisas diferentes do que já existe.

A partir daqui nasceu a ideia de fazermos um festival com programação participativa. 

De que forma o festival espera influenciar a auto-estima e a identidade cultural da aldeia do Souto?

Através da valorização das pessoas, das suas histórias, dos seus costumes. A valorização é a maior arma para impulsionar um território. Se ninguém estimar o que existe no Souto, as suas histórias e memórias vão-se perdendo e dissipando e as novas gerações não as vão conhecer.  Dando um exemplo concreto. O tema desta 1ª edição é o Colectivo, por essa razão, organizamos uma exposição denominada “Retratos de nós”, estes retratos são das pessoas desta região porque o território são as pessoas que o habitam e mantêm. Com a ajuda do Padre Pedro Tropa, andámos por algumas aldeias a fotografar as pessoas no final de cada missa. Montamos uma cena com objectos antigos, rodilhas, cantarinha, colchas feitas pelas tecedeiras. As pessoas ficaram muito felizes de ver aqueles objectos, relembraram muitas histórias, fizeram fila para serem fotografas em grupo, grupos de amigas, madrinhas e afilhadas, pais e filhos, etc. Nos dias 21 e 22 de Setembro vão-se poder ver nesta exposição. E estas fotografias vão ficar para sempre. Estas pessoas vão existir para sempre nestas fotografias. Isto é uma acção de valorização das pessoas que habitam no território. 

Como é que as comunidades locais foram envolvidas no processo de planeamento e execução do festival?

Em primeiro lugar, fizemos uma open call para todas as pessoas da região e quem quis inscreveu-se. Depois através do “passa palavra” juntaram-se mais umas quantas pessoas. 

Nos primeiros encontros fizemos sessões de capacitação onde falámos sobre programação, produção, planeamento, orçamento e comunicação. 

Em seguida começámos a materializar a Festa do Futuro e a tomar as primeiras decisões. Com este colectivo que está a fazer a programação da 1ª edição nasceu a ideia de fazer uma programação que misture projectos que já existem no território e projectos de artistas contemporâneos de outras zonas do país. 

Depois de decidida a programação começámos a imaginar a decoração. Como podemos concretizar a ideia de colectivo numa decoração? Aqui surgiu a ideia de trabalhar as linhas e os nós e, concretamente, o crochet. Fomos falando com quem sabe fazer crochet e desafiando a fazer as decorações para a Festa do Futuro e, neste momento, temos as senhoras do Grupo de Bordados de Fontes, pessoas do Carvalhal, do Souto, algumas que, apesar de serem desta terra, vivem em Lisboa e outras que são mesmo de Lisboa. É mais uma vez o “passa palavra” a funcionar.  

Agora estamos na fase final, a montagem propriamente dita e ainda estão a surgir novas pessoas que se querem juntar a este Colectivo Futurista. 

Quanto mais pessoas tivermos mais ideias surgem, porque nós somos diferentes e temos experiências e conhecimentos diferentes. E essa diferença é rica e permite-nos apresentar uma programação diferente do que existe e, por outro lado, as pessoas podem participar de forma activa e aumentar as suas práticas culturais. Ao terem de escolher artistas de música ou de teatro ou de dança, vão ter de procurar, pesquisar, ver coisas. É também uma forma de aumentar o seu capital cultural e de estimular a curiosidade.

Durante este processo todo temos tido a colaboração do tecido associativo de toda a região e isso é espectacular, desde a cedência de espaços a empréstimo de material, ao envolvimento das pessoas associadas. A Festa do Futuro foi, sem dúvida, abraçada pelas associações que aqui estão há muitos anos e sem elas, nada disto era possível.

No fundo, a Festa do Futuro é a comunidade em acção. Através de uma programação participativa feita por quem quer inventar o futuro juntamos pessoas, identidades e comunidades locais a artistas e projectos culturais contemporâneos provenientes de outras regiões do país.

Quais são os principais desafios que enfrentaram ao organizar um evento cultural numa região rural e desertificada?

Nem tudo é um mar de rosas. Estamos a falar de um território que tem uma actividade artística muito escassa. Isso faz com que as pessoas tenham poucas práticas culturais e poucas referências. Nos cafés ainda se vêem muitos mais homens do que mulheres. E a mobilização é difícil. As pessoas querem, mas depois não se mobilizam, as mulheres ficam em casa, os homens no café. Temos de fazer um trabalho porta a porta, relembrar que é importante a presença delas, ligar, mandar mensagens. 

Mas há outro desafio, o reconhecimento. A maior parte das pessoas não reconhece o seu conhecimento, não valoriza as suas experiências de vida. Acham que as suas vidas não têm interesse porque trabalharam a vida toda na agricultura, ou porque foram tecedeiras e tiveram a tratar das suas crianças. E nós estamos sempre a combater esse pré-conceito que as pessoas têm. Porque é esta mentalidade que faz com que o conhecimento sobre o tear se esteja a perder. 

Outra dificuldade são os transportes públicos, a rede é fraca e as distâncias são grandes, ou temos carro ou não conseguimos deslocar-nos de forma célere até outra aldeia. Como as aldeias têm cada vez menos pessoas, se não existir uma rede que as liga é mais custoso fazer um projecto desta dimensão. Esperamos que este projecto e outros consigam, de alguma forma, impulsionar determinadas medidas políticas, como por exemplo, a existência de mais transportes públicos que liguem as aldeias umas às outras. 

Mas estas dificuldades são boas porque nos levam a novas soluções criativas e a novas ideias, e a pensar no que é melhor para este território. Na nossa perspectiva um problema é sempre uma oportunidade para criar algo. E por isso, estamos aqui. 

Como esperam que o festival evolua nas futuras edições?

No próximo ano queremos trazer profissionais de outras estruturas para estas sessões de capacitação. Esta também é uma forma de dar ferramentas às pessoas, que as podem levar para as suas associações, casas do povo, sociedades recreativas, etc.

No futuro, queremos que a festa cresça para as zonas e aldeias que circundam o Souto, envolver cada vez mais pessoas e transformar a região. Acreditamos que a Festa do Futuro, através do projeto de programação participativa, pode contribuir para a coesão territorial deste concelho. 

Queremos aumentar o financiamento da Festa para podermos trazer cada vez mais coisas e mais diversas, dar a conhecer o que é feito noutras zonas do país, desafiar profissionais da cultura a trabalharem e criarem espectáculos novos com os grupos que existem neste território, como os grupos de cantares, folclore, teatro, bandas filarmónicas, grupos de bombos, para serem, posteriormente, apresentados na Festa do Futuro. Desejamos continuar a aumentar as parcerias com empresas deste concelho e concelhos limítrofes, conseguir que a comunicação social colabore connosco na divulgação. Escolher anualmente um tema diferente e trabalhá-lo com a comunidade ao longo do ano. 

E a Festa do Futuro tem sido construída assim: pedaço a pedaço, cada dia metemos mais um tijolo. Daqui a uns anos esperamos ter uma grande casa onde haja sempre espaço para mais uma pessoa. Sabes aquelas casas onde há sempre um prato para mais uma pessoa comer? É esse o nosso sonho, sermos um festival onde há espaço para todas as pessoas, onde há sempre espaço para mais uma, onde há comida para toda a gente, onde há muita arte e muita imaginação, onde há muito amor, onde há muito debate, onde há fervilhar de ideias. 

Qual o papel das parcerias institucionais, como o apoio da Câmara de Abrantes, na concretização do festival?

É fundamental. Sem o apoio das instituições é muito difícil conseguir montar um projecto desta envergadura. O poder local é determinante no dia-a-dia. Se não tivermos o seu apoio, tudo fica mais difícil. E aqui quando falamos em apoio não é só em apoio financeiro, mas também logístico, de divulgação, de conferir credibilidade a um projecto cultural. 

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