Miriam da Silva

Miriam Maia da Silva, que enfrentou três cirurgias cardíacas, transformou as suas experiências num livro infantil para ajudar outras crianças com a mesma condição. Com um toque pessoal e um propósito solidário, a médica Miriam lança “A Menina do Coração de Latinha”, um livro infantil que desmistifica a doença cardíaca valvular.

O que a motivou a escrever um livro infantil sobre um tema tão específico como a doença cardíaca valvular?

Nasci com um problema cardíaco e tive de ser operada, primeiro aos 3 meses, depois aos 5 anos e, mais recentemente, aos 33 anos para colocar uma válvula mecânica. “A Menina do Coração de Latinha” surge fundamentalmente por dois motivos. O primeiro, foi para explicar às crianças a doença cardíaca valvular e desmistificar o ambiente hospitalar e cirúrgico, tendo por base as minhas vivências e cirurgias cardíacas. O segundo, foi para apoiar a Associação Coragem, do Hospital de Santa Cruz, na sua missão de ajudar crianças com doença cardíaca e as suas famílias, doando todos os direitos autorais, transformado este livro, num livro solidário.

A sua experiência como médica interna de Medicina Geral e Familiar influenciou a escrita do livro? De que forma?

Penso que sim, porque existe de base o conhecimento médico, ainda que em “construção”, e porque a especialidade de Medicina Geral e Familiar tem um contacto privilegiado e particular com a Família e com os seus problemas. Na nossa prática gera-se uma relação terapêutica envolvida em empatia, confiança e disponibilidade, que é fundamental e que se aprende e trabalha com o tempo… Foram estes aspectos “terapêuticos” que aprendi e tentei transportar para o livro. Empatia, porque eu própria passei pela experiência de ser operada ao coração; confiança, ao explicar todas as fases deste processo – diagnóstico, tratamento e recuperação – e disponibilidade para falar abertamente, e vezes sem conta, deste tema.

Sendo uma ribatejana, como é que a identidade regional influenciou a sua visão sobre a saúde e a literatura infantil?

Na adolescência tive comportamentos alimentares menos saudáveis e não era adepta de exercício físico, tendo excesso de peso… tinha de criar consciência do que estava a fazer de errado e mudar de atitude para preservar a minha saúde, para cuidar do meu coração. Penso que é aqui que a identidade regional entra… quero acreditar que a garra e persistência ribatejanas ajudaram a mudar os meus comportamentos. Não é um processo fácil, requer exatamente força de vontade para a mudança e tempo, mas é possível e a saúde agradece. Hoje sou uma defensora da Medicina do Estilo de Vida que tento colocar em prática não só no meu quotidiano, por exemplo, com escolhas alimentares saudáveis e com a prática regular de actividade física, mas também no exercício de Medicina Geral e Familiar. Se investirmos num estilo de vida saudável, “poupamos” na doença.  A determinação ribatejana também foi muito útil para lutar e alcançar sempre os meus sonhos e objectivos e “A Menina do Coração de Latinha” é prova disso!

Como equilibrou a necessidade de abordar um tema médico complexo de forma clara e acessível para crianças?

Foi sem dúvida um desafio, mas contei com ajuda de um enfermeiro e psicólogo para tentarmos, em conjunto, encontrar uma linguagem simples e clara, mas que mantivesse o rigor da mensagem a transmitir. Apesar da adaptação à realidade/universo das crianças, a escrita do livro acabou por correr de uma maneira muito fluida. Acho que as ilustrações, mais do que as palavras, é que dão vida à história. Estas ajudam, e muito, a captar a atenção dos mais pequenos e a explicar todo o processo das crianças que precisam de ser operadas ao coração. O feedback que temos tido é que as ilustrações que o António Neves criou são muito apelativas e ternurentas contribuindo para o sucesso que o livro está a ter.

Quais a principais mensagens que deseja transmitir às crianças e aos seus familiares através do livro?

Acho que a principal mensagem do livro é tranquilizar a criança e os pais (se é que tal é possível) com a ideia de que “ser operado ao coração é uma experiência tolerável”, como refere o Professor Doutor Queiroz e Melo no prefacio deste livro, e realçar a importância que familiares, amigos e todos os profissionais de saúde e de educação têm ao longo de todo o processo. Mais do que a doença em si é o ambiente à volta da criança que gera memórias, que esperemos que sejam agradáveis apesar do sofrimento, tal como aconteceu comigo. 

Como foi o processo de criação do livro? Quais as maiores dificuldades que enfrentou?

Passou por várias etapas: a primeira envolveu um trabalho de investigação prévio para saber se existiam livros dedicados a explicar a doença cardíaca às crianças. Depois passámos para a criação do texto, onde foi necessário adaptar a linguagem ao universo das crianças. E por último tínhamos a ilustração. Desafiei o meu sobrinho, António Neves, ainda o projecto do livro estava só na minha mente, e ele aceitou criar todo o imaginário visual. O António é bastante criativo e disponível e, por isso, o processo criativo correu muito bem. No processo de criação do livro a maior dificuldade foi perceber como devíamos “submeter” a obra às editoras para apreciação. Não fazíamos a menor ideia de como funcionava esse processo e o mercado editorial.

Por que escolheu o Professor Doutor Queiroz e Melo para escrever o prefácio?

Na realidade não fui eu que escolhi… foi o destino. Estava num encontro da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), em Vilamoura, e queria muito ouvir uma palestra que ia existir sobre One Health, porque desconhecia sobre o que se tratava. Quando entrei na sala e vi o Professor Doutor Queiroz e Melo, não queria acreditar… tinham-se passado tantos anos desde que o Professor tinha realizado as minhas duas cirurgias da infância… percebi de imediato que só poderia ser o Professor a escrever o prefácio deste livro. Fui ter com ele e conversámos, tirámos fotografias e nesse momento pedi-lhe o endereço eletrónico, sob o pretexto de ter um desafio para lhe lançar. Enviei-lhe a história e gentilmente aceitou o meu convite e logo pouco tempo depois já tinha o prefácio do livro pronto. Fez todo o sentido ser o Professor Doutor Queiroz e Melo a escrever o prefácio, não só por ser um ilustre Cirurgião Cardiotorácio, mas, sobretudo, porque foi o Professor que “arranjou” e cuidou do meu coração. Tem para mim um simbolismo incalculável.

Por que decidiu reverter os direitos autorais para a Associação Coragem?

Como disse anteriormente a Associação Coragem tem uma missão muito nobre – ajudar todos os corações especiais – como tal, tanto eu como o António pensámos, desde início, em doar todos os direitos autorais à associação para que a Coragem que leva às crianças e familiares possa continuar a existir. Acaba por ser um gesto simbólico de responsabilidade social, mas acima de tudo, um gesto de gratidão pelo trabalho desenvolvido por todos os profissionais, não só da Associação Coragem, mas de todos os que lidam com a doença cardíaca no Hospital de Santa Cruz e que se empenham em tornar os cuidados de saúde sempre humanizados.  

Por que considera importante que as crianças e seus familiares conheçam a doença cardíaca valvular?

Independentemente do tipo patologia, crianças e adultos devem poder conhecer as suas doenças. E para isso é importante apostar na Literacia em Saúde, não só relacionada com a doença cardíaca valvular, como é o caso do livro “A Menina Do Coração de Latinha”, mas também sobre outros temas. O objectivo é gerar “informação de qualidade” que seja fácil de aceder, compreender e avaliar por parte das pessoas para que possam, através dos seus comportamentos, melhorar a sua saúde. 

Quais os maiores desafios que as crianças com doenças cardíacas enfrentam?

O espectro da doença cardíaca é muito vasto… No entanto, penso que o principal desafio é aceitar a doença e as suas eventuais limitações. Muitas vezes, conviver com a doença cardíaca requer algumas adaptações. Como tal, se aceitarmos a doença estamos mais receptivos a desenvolver ferramentas e estratégias que vão facilitar essas mesmas adaptações, que podem vir a ser necessárias ao longo da nossa vida, fruto da evolução natural da doença cardíaca. É possível lidar com os vários desafios basta adaptar. E penso que isto é tão válido para as crianças como para quem convive com a doença cardíaca.

Quais são seus planos para o futuro, tenciona escrever mais livros, ou irá dedicar-se totalmente à medicina?

Não vejo a experiência do livro como alternativa à dedicação total à medicina. De certa forma, foi até a dedicação total à medicina, como eu a encaro, que me empurrou para a escrita do livro. Como já referi este livro surge devido às minhas vivências cardíacas e até à publicação do mesmo, essa ideia não existia. Só depois do lançamento do livro e, em conversas com colegas, é que a hipótese de escrever outros livros foi levantada. Seria um projecto muito desafiador “sair da minha zona de conforto”, mas não excluo a possibilidade de, a longo prazo, vir a escrever sobre outros temas ou doenças. Por agora, ainda estou a desfrutar das várias experiências que este livro me está a proporcionar em virtude da sua divulgação. O exercício da medicina, esse, espero que esteja sempre presente na minha vida e que possa ser enriquecido por vários projectos que possam surgir.  

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