Sónia Lobato, actual presidente da União Distrital das IPSS de Santarém, traça, ao Correio do Ribatejo, um retrato do terceiro sector da região, onde a “falta de mão de obra qualificada, é um dos maiores problemas e praticamente transversal”. Nesse sentido, sugere que, para melhorar a capacidade de resposta do sector, é preciso que este passe a atrair pessoas qualificadas e motivadas, defendendo uma regulação laboral específica para o terceiro sector, que assegure a valorização e salários dignos para funcionários e pessoal técnico. Além desse aspecto, a jurista, que é também dirigente do Lar Evangélico Nova Esperança, defende a redução da TSU para o terceiro sector, a revisão dos acordos de cooperação (mínimo 50%), a definição legal da categoria de Director-Técnico e a formação profissional.
Tomou posse como presidente da UDIPSS numa altura particularmente difícil. Que realidade encontrou?
Assumir mandato num cenário pandémico não é fácil, mas tempos excepcionais precisam de equipas excepcionais. E este foi o estado de espírito que encontrei no terceiro sector. Na sua maioria, as Instituições no nosso distrito foram e estão a ser excepcionais. As dificuldades são uma realidade crescente, mas a resiliência dos dirigentes e trabalhadores do terceiro sector são a imagem de marca destes tempos difíceis, o que torna o cenário esperançoso.
Quais são os principais problemas vividos pelas IPSS do distrito?
A falta de mão de obra qualificada, é um dos maiores problemas e praticamente transversal. Trabalhar com pessoas, cuidar delas até ao último dia, requer vocação e dedicação. Mas, infelizmente, muitas associadas nossas, não têm como exigir isso. A oferta de mão de obra é escassa ou não cumpre requisitos. O que muitas vezes acabamos por fazer, e como dirigente de IPSS assumo que o fazemos, é deixar cair exigências para mínimos, por exemplo: se um candidato apresentar sentido de compromisso e aparência cuidada, na ausência de outros, arriscamos a contratação. Porquê? Um trabalho por turnos não pode estar refém de pessoas irresponsáveis que a 10 minutos de entrar não comparecem. Isto é irresponsabilidade. Por outro lado, se estas pessoas vêm cuidar da higiene e alimentação de pessoas, têm que, em primeiro lugar, cuidar delas próprias. Outra necessidade sentida é o financiamento por parte do Estado que não acompanha o custo real por utente, provocando desequilíbrios sérios na gestão de contas das Instituições.
Que soluções preconiza?
Apostar na criação e divulgação de cursos profissionais vocacionados para agentes geriátricos. Sensibilizar já os mais pequenos para esta profissão tão digna. Em simultâneo uma actualização à tabela salarial.
Importa valorizar as condições salariais para tornar atractivo o ingresso no terceiro sector. Não pode vir quem não arranja mais nada, mas sim quem pretende mesmo estar e cuidar das pessoas mais frágeis e desprotegidas da nossa sociedade.
Que reivindicações apresentam ao Governo? E às autarquias?
Nós temos assento na CNIS, a confederação que se senta à mesa com o governo, marcando presença no Conselho Geral. A questão acima colocada é um dos temas já reivindicados. A criação de uma TSU específica para o terceiro sector é outra solução defendida por esta equipa, em vista a aliviar as despesas mensais certas e permanentes das Instituições. Relativamente às autarquias, nossos parceiros do social, temos trabalhado alguns protocolos de colaboração partilhada, atribuindo um apoio à União que em troca presta apoio e formação gratuita às IPSS de cada concelho do distrito de Santarém, sendo que, representamos 186 instituições. Às autarquias interessa-lhes que as associações desempenhem um trabalho de qualidade no terreno, à UDIPSS, conhecedora do dia-a- dia, interessa-lhe ser a interlocutora e mediadora do processo em vista a consolidar a acção do terceiro sector.
As IPSS desempenham um papel essencial nas respostas sociais asseguradas às populações, principalmente ao nível da infância e da terceira idade. Como caracteriza a actual situação?
A situação é preocupante do ponto de vista financeiro e humano. Este tempo de pandemia trouxe à tona fragilidades já sentidas. Corremos o risco de ver encerrar respostas sociais mais isoladas e pequenas, por ausência de apoios. Há que repensar o modelo de financiamento às IPSS, mas também as mensalidades cobradas. Dou um exemplo corrente, infelizmente, nalgumas instituições nossas associadas com respostas na infância e juventude: aquando da inscrição de crianças, os encarregados de educação têm de fazer prova dos rendimentos e outras coisas mais para aferirmos da fixação de escalão. E em algumas situações resulta que nada têm como rendimentos, mas os sinais exteriores de riqueza são evidentes. Casos temos de famílias que quase nada pagam, mas vão levar e buscar os filhos de mercedes, por exemplo. O que quero dizer com isto é que estando nós no terceiro sector que se quer de solidariedade, se queremos vida longa para o sector temos de discutir a redistribuição do mesmo. Estaremos mesmo a fazer chegar solidariedade a quem dela precisa ou aos que sabem se chegar a ela? Mecanismos de fiscalização e controlo são necessários, mas não esqueçamos que as nossas IPSS são resposta certa em muitas zonas pequenas onde todos se conhecem. Este é o melhor e o pior do nosso mundo.
Que papel atribui à União das IPSS do distrito?
O nosso papel é determinante, qualquer que seja a equipa. Mas a aproximação de transferência de competências sociais para as autarquias locais, merece a nossa máxima atenção. Somos o stakeholder certo para fazer a ponte na rede social. Congregamos os dados e as necessidades, porque através dos nossos serviços auscultamos e temos uma noção clara do caminho que estamos a fazer. Arrisco a dizer que somos o drone consentido do terceiro sector. Temos a fotografia exacta do que se passa e isso confere-nos o poder e a competência para dizer o que fazer, como fazer e quando fazer. Num tempo em que o debate de perguntas é infindável, ter respostas é tudo o que se quer. Esta é a nossa mais valia.
A evolução demográfica, com o crescente envelhecimento da população coloca grandes desafios também às IPSS. De que forma estão a adaptar-se para acolher o crescente número de idosos que carecem dos seus serviços?
O ideal, e desde logo defendemos isso na nossa candidatura, é fazer da Institucionalização uma opção e não a única solução. Ou seja, mais do que construir lares, importa revolucionar a prestação de serviços. Dar possibilidades aos idosos de escolherem entre ficar na sua casa até morrer ou escolher ir para um lar. Mas para que isso aconteça, importa garantir a existência de uma equipa multidisciplinar que assegure o apoio na alimentação, higiene, medicação, animação, vigilância nocturna, bem como, adequar as habitações dos idosos às suas necessidades. Muitas casas antigas dispõem de banheiras o que dificulta o banho, por exemplo, a uma pessoa acamada, que precisará sempre de cadeira de banho. Cremos que aqui, as autarquias conhecedoras do processo habitacional, têm de ser chamadas a isto. Em paralelo, precisamos de trabalhar na construção e formação de equipas. O capital precioso do terceiro sector está no edificado humano. Urge olhar e tomar isto como desafio e trabalhar nesse sentido.
Que novas respostas estão a ser encontradas para que os lares e centros de dia não sejam meros armazéns e favoreçam um tempo de qualidade dos seus idosos?
O reforço de pessoal ajudaria muito a combater essa ideia de “depósito”. Mas permita-me referir que temos instituições que todos os dias trabalham no sentido de reinventar a relação instituição e utente, fazendo do lar um verdadeiro lar. O recurso às redes sociais como forma de comunicar e mostrar o que vai acontecendo nas Instituições é uma prova viva do trabalho que se tem feito. E não esqueçamos a reacção que tivemos à pandemia, estivemos na linha da frente, olhos nos olhos com a COVID. E lá voltámos no dia seguinte, abdicando dos abraços e afectos da família, para cuidar de quem nós precisa. Há coisas menos boas a ser melhoradas, há. Evidentemente que sim. Mas há respostas sociais de qualidade e eficiência, que se reconheça isso para ser estímulo para quem ainda não o faz.
Foram referenciados 130 lares ilegais no distrito, pela Protecção Civil, mas as autoridades consideram que serão mais. O que pensa desta situação? O actual contexto poderá servir para converter estes lares à legalidade?
Existem lares ilegais porque existem “empresários” que teimam seguir essa via, e famílias que os procuram, pelo meio estão as vítimas: os idosos. Em nossa opinião, criar uma legislação simplex seria o ideal. Actualmente, o licenciamento em vigor obriga o cumprimento de critérios seja para uma resposta que conte com 10 ou com 30. Não há distinção. Criar um meio termo, seria menos uma desculpa para aqueles que teimam em permanecer na ilegalidade. Somos defensores da regularização destas situações e consequentemente, trazê-los para a mira da fiscalização como as demais estão sujeitas.
Considera que o Governo vai ter em conta a excepcionalidade destes anos e pandemia nas actualizações da comparticipação da cooperação com o sector social?
A actualização da comparticipação continua aquém dos 50% prometidos aquando do início do compromisso com o terceiro sector. Mas os apoios ao nosso sector não se esgotam nos subsídios. Criar uma TSU própria e aplicável ao terceiro sector é necessário, assim como, a profissionalização dos dirigentes das nossas Instituições. Do Governo esperamos medidas concretas e exequíveis, assentes numa justa redistribuição do dinheiro público. A pandemia trouxe mais custos? Trouxe. As sucessivas actualizações à RMMG, são adequadas? São e não são. Porquê? Numa economia perfeita, deveríamos actualizar todas as categorias em igual proporção, não sendo possível, ficamo-nos pelo obrigatório o que gera um sentimento de injustiça e insatisfação junto daqueles que estão no sector há 10 anos, porquanto quem entra hoje fica a ganhar tanto quanto aqueles que estão há mais tempo. Corrigir isto só com mais receitas. Ora, as nossas receitas têm primordialmente duas fontes: famílias e estado.
A COVID-19 deu a conhecer muito mais o sector social. É positiva a imagem que vai ficar?
Numa primeira fase a conotação foi negativa. Tivemos uma condenação generalizada por parte da sociedade aquando dos surtos por todo o país. Mas as pessoas não sabem que neste sector somos os “desenrasca”. Desenrascamos sempre tudo mesmo não tendo nada, porque muitos dependem de nós. Não ter pessoas para trabalhar não anula a nossa responsabilidade sobre os utentes a nosso cargo, da infância à deficiência! Falhamos, sim. Mas a nossa missão é nobre e não há dinheiro suficiente que a pague, mas devemos lutar por aproximar o que é justo e motive a que mais pessoas queiram vir trabalhar para este sector que têm em mãos a vida humana, mas mais do que isso: a dignidade da pessoa humana, do nascer ao morrer. Que as comunidades valorizem e colaborem com as suas instituições locais, apoiando financeira ou moralmente, é o que esperamos. Depois de ano e meio de luta que não conseguimos ainda vencer, precisamos do reconhecimento das pessoas. Não queremos aplausos, queremos que valorizem o nosso esforço com palavras construtivas, porque a palavra tem muito poder, para o bem e para o mal, a ser assim: fale-se mais bem que mal, porque o bem procuramos nós fazer todos os dias, sem pausas pelo meio.