Um dos temas mais aliciantes na investigação antropológica prende-se com a influência resultante dos contactos entre pessoas de diferentes comunidades e até de distintas regiões do nosso país, decorrentes, na maioria dos casos, de relações de trabalho que se estabeleciam em movimentos sociais que ficaram conhecidos por migrações.

Num tempo anterior ao da mecanização da agricultura ribatejana, era habitual a contratação de ranchos de trabalhadores que vinham suprir as carências locais de mão-de-obra. Nas cavas, nas mondas, nas ceifas, nas vindimas e na apanha da azeitona era utilizado essencialmente trabalho braçal, que nas zonas de maior extensão agrícola – em regra, regiões com densidades populacionais mais baixas – escasseava por ocasião destas grandes fainas.

O Ribatejo, ou a Borda-d’água, como então lhe chamavam as gentes de fora, era o principal destino destes ranchos de trabalhadores oriundos da Estremadura, das Beiras e do Alentejo. Conforme as suas proveniências, e para melhor distinção, os ribatejanos chamavam-nos de ratinhos, de bimbos, de chartéus, de barrões, de caramelos, de serrenhos ou de gaibéus, o que, não há como escondê-lo, carregava um certo estigma em relação a esta humilde e laboriosa gente, o que do ponto de vista dos camponeses locais até era compreensível.

É que a lei do mercado, que estabelece o preço na relação entre a oferta e a procura, também se fazia sentir neste mercado laboral, pelo que quando escasseavam os trabalhadores locais o preço das jornas deveria subir, porém, a vinda dos ranchos de fora subvertia esta regra e lá se continuava a ganhar de jorna pouco mais do que uma miséria. 

Este fenómeno migratório também ocorreu ao nível dos pescadores do Tejo, e dos seus principais afluentes, embora, como é natural, suscitado por diferentes motivações. O que poderemos considerar comum a todos os casos de migração era a necessidade de conseguir trabalho para prover o meio de sustento das populações que se deslocavam.

As comunidades piscatórias instaladas nas margens dos rios Tejo e Sado eram constituídas por pescadores oriundos de Vieira de Leiria, de Pedrogão, da Murtosa e de Ovar, que, nos meados do século XIX, começaram por vir fazer a campanha do sável, e muitos acabaram por ficar por estas terras ribatejanas, conhecendo-se os primeiros assentamentos ainda no último quartel desse século. 

Por cá eram tratados por avieiros, numa lógica relação com a Praia da Vieira, ou por cagaréus, dado o facto de os marítimos aveirenses ali serem também conhecidos por esta designação, e aqui se mantiveram durante muitas gerações num ambiente fechado, assente nos casamentos endogâmicos, pouco convivendo com as populações locais. Enquanto a pesca ia dando para o sustento da família, posto que depois tiveram de virar costas ao rio e encontrar melhor futuro na agricultura, nas obras e nas fábricas…

Ao cabo e ao resto aconteceu aos pescadores avieiros o que tinha sucedido aos seus antepassados, na Praia da Vieira, que tiveram de virar as costas ao mar e granjear a sua vida na borda d’água ribatejana. Aqui passavam o inverno dedicando-se sobretudo à pesca do sável, mas também da enguia, do barbo, da saboga e até da lampreia.

Seria particularmente interessante fazer o estudo do impacto socio-económico destas migrações, algo que ainda está por fazer de forma sistematizada e exaustiva no caso ribatejano, posto que durante muitas décadas se assistiu ao deslocamento de milhares de pessoas que se fixaram temporariamente na nossa região, em muitos casos durante alguns meses, uma vez que também não era fácil vencer as distâncias entre as mais recônditas aldeias do interior do país de onde eram originários e a província do Ribatejo, onde alugavam a força do seu trabalho.

 Numa perspectiva social dispomos de basta informação em alguns dos mais emblemáticos romances do escritor neo-realista Alves Redol, recolhida pelo próprio junto das comunidades que estudou e onde é possível constatar a exploração a que estas laboriosas gentes foram sujeitas, roubados na féria, no descanso e no pão naquilo que era o lucro dos lavradores.

Trabalhava-se de sol-a-sol seis dias por semana, apenas se descansando ao domingo, para dar alguma folga ao corpo e para ajeitar as poucas roupas que tinham. Homens e mulheres viviam nos quartéis, espaços incómodos e insalubres onde pernoitavam separados apenas por uns panais que suspensos numa corda dividiam a ala feminina da ala masculina, mas, inevitavelmente, sem preservar uns e outros do desconforto natural desta promíscua situação.

Quando calhava, no pouco tempo de descanso das imensas fadigas, nas tardes de domingo, os camponeses, sobretudo os mais novos, bailavam algumas modas ao som de um roufenho harmónio ou apenas de uma singela gaita de beiços. Uns fados, umas modas de roda ou algumas chulas… enfim, conforme o reportório do tocador, que, como se perceberá, também não seria muito vasto, uma vez que também ele passava a maior parte do seu tempo no trabalho duro do campo. À falta de tocador não deixava de se fazer o bailarico, cantando homens e mulheres algumas melodias singelas, mas que ajudavam a esquecer o sofrimento de uma vida tão ingrata e a matar as saudades da família que ficara na aldeia natal.

Na maioria dos ranchos de trabalhadores deste tempo não abundavam os homens, uma vez que as fainas a que se destinavam eram essencialmente “trabalho de mulheres”, como eram as mondas, as ceifas, a vindima e a apanha da azeitona. Os homens vinham mais para as cavas, para as podas, para ceifar à gadanha ou para a apanha da azeitona, das oliveiras galegas, de grande porte, que tinham de ser varejadas e até “arreadas”.

Os ribatejanos, especialmente os rapazolas mais atrevidos, lá pediam licença ao capataz ou à manajeira do rancho para bailarem alguma moda, especialmente se já tinha havido troca de olhares com alguma moçoila de fora. Tentando agradar aos rapazes da terra, o capataz apesar de se fazer rogado, alegando, talvez, que estava recomendado pelos pais das raparigas para evitar “larguezas”, sempre autorizava uma ou outra moda, o que era bem aceite por todos. Salvo se algum abusasse, o que, a acontecer, ditaria logo o seu afastamento… Que ali não se aceitavam quezílias!

Muitos homens e, sobretudo, mulheres destes ranchos acabaram por ficar por cá casando com gente da terra, sendo hoje notório em muitas aldeias e vilas ribatejanas a existência de famílias que têm a sua origem nas Beiras, na Estremadura ou até no Alentejo. Aqui bem perto de Santarém tal é constatável no Vale de Santarém ou no Pombalinho, para não citar outros casos.  

Deste contacto, constante e continuado ao longo de tantas gerações, resultaram influências que têm uma interessante expressão em muitos aspectos da vivência do povo de cada uma destas regiões, nomeadamente no folclore, pois, músicas e danças com as mesmas raízes acabam por ter variantes tão distintas, resultantes da aculturação que se verificou, em cujo processo o carácter e o temperamento de cada comunidade se manifestou tão eloquentemente. Uma herança cultural de grande simbolismo!

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