Contra ventos e marés, prosseguem, nas imediações do Cemitério dos Capuchos, em Santarém, as obras de construção do crematório municipal, equipamento que já se questiona pelo menos há uma dúzia de anos, e cuja história, às vezes algo rocambolesca, deveria suscitar uma profunda reflexão sobre as práticas políticas usuais na capital ribatejana. As frequentes indecisões de quem legitimamente detém o direito de exercício do poder, e alguma intermitência por parte de quem, igualmente de forma legítima, se constitui como oposição, têm provocado o adiamento de soluções que deveriam ocorrer mais céleres, satisfazendo as necessidades e as expectativas de toda a população.
O que acontece com a tão controversa construção do forno crematório, é apenas mais um exemplo da forma como se protelam os problemas escalabitanos, escondendo-os debaixo do tapete, umas vezes, ou, à boa maneira portuguesa, empurrando-os com a barriga, sugerindo que ainda não estão suficientemente perto para termos de nos preocupar com eles. Este é um hábito antigo!
O que aconteceu com a construção do forno crematório, aconteceu também com o projecto do novo cemitério que, afinal, parece que é opção já retirada da agenda política, com as capelas mortuárias, cujas hipóteses de localização também mudam conforme a orientação dos ventos ou a conjugação de alguns evidentes interesses pontuais.
Mas, não é este o tema que me proponho abordar aqui e agora. Talvez volte ao assunto mais tarde. Do que quero falar é sobre o nosso Cemitério dos Capuchos e especular um pouco sobre um aspecto que, culturalmente, me inquieta, na esperança de que possa provocar alguma reflexão sobre o tema. O nosso Cemitério é mais do que um espaço onde se sepultam os cidadãos membros da nossa comunidade, entre os quais os nossos familiares e amigos.
O Cemitério dos Capuchos é, em certa medida, um monumento que encerra muita da história de Santarém e do país, sendo, amiúde, referido pela sua importância a este nível. Decorrente do liberalismo português os cemitérios adquiriram uma transcendência maior, posto que até então, os mortos, especialmente se se tratava de clérigos ou gente ilustre da sociedade, eram sepultados no interior ou no adro das igrejas, uma estrutura social vocacionada para os vivos, mas que facilitava, ou impunha, a visita aos mortos, pelo menos por parte de quem intervinha ou assistia às periódicas cerimónias religiosas.
Neste conceito, os cemitérios são espaços de descanso eterno, numa envolvência inspiradora da paz entre os homens, onde não se cultua a morte, em si mesma, mas onde se proclama a memória dos cidadãos e das famílias, porque se acredita que apenas morrem aqueles que são esquecidos, daí a construção dos jazigos ou a aquisição de campas perpétuas, que permitem o enterramento de várias pessoas da mesma família, como que proporcionando um mais fácil reencontro dos entes queridos quando é chegada a hora do passamento.
Uma viagem cultural a qualquer urbe apenas se pode considerar completa quando se visita o respectivo cemitério, para melhor compreensão das especificidades históricas, sociais, económicas, políticas e culturais da respectiva comunidade, posto que, mais do que se pensa, os espaços cemiteriais fornecem-nos basta informação, em diversas e complementares perspectivas.
A organização dos espaços de enterramento, a demarcação da área dos jazigos ou mausoléus, em regra situados ao longo do principal arruamento e na proximidade do edifício religioso, a maior ou menor ostentação das campas e das lápides, muitas das quais enriquecidas com a aplicação de códigos e símbolos, profissionais, religiosos ou políticos, constituem fontes de informação imprescindíveis para quem quiser conhecer melhor essa comunidade e a sua mundividência.
Em 21 de Março de 2007 foi publicado um edital, subscrito pelo Dr. Francisco Moita Flores, na sua qualidade de presidente da Câmara Municipal de Santarém, onde se anunciava a “intenção de declarar prescritos a favor do Município, os jazigos do Cemitério de Santarém constantes da relação infra, cujos titulares não são conhecidos ou demonstraram desinteresse na conservação dos mesmos, caso os mesmos não venham reclamá-los”. Acresce que, ainda nos termos do citado edital, as eventuais reclamações, deveriam ser dirigidas à Câmara Municipal, no prazo de sessenta dias após a publicação do edital, devendo ser acompanhadas do respectivo título de propriedade.
Na ocasião, este edital gerou imensa controvérsia, não tendo havido, contudo, consequências práticas da intenção manifestada formalmente. Retiraram-se os avisos apressadamente colocados nos jazigos e a coisa esmoreceu… Porém, o referido edital não foi revogado, pelo que a sua aplicação poderá ocorrer em qualquer momento e até estar coberta de legalidade, circunstância que aqui não questiono.
Pessoalmente, porque sou uma pessoa muito dada a visitar as campas de familiares e amigos sepultados no Cemitério dos Capuchos, este assunto incomodou-me. Mas, como não tenho jazigos de família a questão até não bulia comigo. Mas, já o que está a ser praticado em relação às campas (ditas) perpétuas e aos gavetões das ossadas me inquieta e considero que o Município não está a agir respeitosamente quando subtrai aos familiares as campas e os gavetões após o décimo ano da morte do titular do mesmo, se não for exibida pelos familiares uma habilitação de herdeiros para poder reclamar a mudança de titularidade da campa ou do gavetão.
Mesmo que a pessoa titular da campa ou do gavetão não tivesse à data do seu falecimento outros bens, é exigido que os familiares se habilitem notarialmente para evitar que os restos mortais dos seus entes familiares sejam removidos para a “vala comum” quando repousam num espaço que adquiriram para sua morada perpétua.
O Município vendeu um bem, arrecadou o valor estipulado e passados uns anos vem retirar a posse e os direitos ao adquirente! Não está certo, não é uma atitude respeitadora de quem em vida cumpriu os seus deveres e quis assegurar para si e para os seus entes queridos uma morada eterna e tranquila após a morte.
Todavia, e é, essencialmente, este o motivo deste escrito, na “relação infra” a que alude o edital supracitado, constam mausoléus ou jazigos de pessoas ilustres como o Padre Francisco Nunes da Silva, vulgo “Padre Chiquito”, o Marquês de Belas, o Marquês de Sá da Bandeira, o Barão de Almeirim, o Visconde da Fonte Boa, o Visconde de Serra do Pilar, o Bispo de Damão, o Visconde do Landal, Armando Ginestal Machado e António Bernardo de Figueiredo, entre outras personalidades menos conhecidas mas igualmente importante na história social e económica da nossa região. Será que estes ilustres cidadãos vão ser despojados das suas moradas perpétuas? E o que vai acontecer aos seus jazigos, alguns autênticos monumentos?
No contrato de concessão do crematório a uma empresa da especialidade, que fará a sua “exploração comercial”, consta a condição de serem cremados, sem custo para o Município, cerca de quatrocentas ossadas (restos mortais) de sepulturas perpétuas, as quais reverterão para o património municipal. Eliminando-se estes jazigos, autênticos monumentos da história local, regional e nacional, apagam-se as memórias em relação às suas personalidades e aos seus feitos. Apagar a história será valorizar uma cidade e um concelho, apenas a troco de uns míseros milhares de euros, que poderão resultar da posterior alienação destes monumentos?
Aqui quero partilhar esta minha inquietação, em tempo de homenagem aos Fiéis Defuntos, para que quem direito não deixe de agir em defesa do bem comum e da nossa cultura escalabitana.
Ludgero Mendes
In Correio do Ribatejo – Edição 1 de Novembro 2019