Luís Pavão é um apaixonado pela fotografia e um dos mais reputados especialistas nacionais na área da preservação digital de documentos históricos. A sua empresa, a LUPA (Luis Pavão Limitada) foi responsável pelo tratamento de conservação da colecção de fotografia de Carlos Relvas e, mais recentemente, da digitalização de todo o Arquivo do Correio do Ribatejo, possibilitando que o Jornal disponibilize ao grande público os seus 131 anos de publicações ininterruptas. “Há um grande passo em frente no sentido da utilização e divulgação” de todo este manancial de informação, considera Luís Pavão.

De onde vem o seu gosto pela área do restauro e da conservação?
A minha paixão é a fotografia e por aí comecei. Tenho uma Licenciatura em Engenharia Electrotécnica, pelo Instituto Superior Técnico, mas nunca exerci a profissão. Terminei o curso em 1981 e, nessa altura, já estava a fotografar e a trabalhar em fotografia para vários clientes.
Inicialmente, fiz uma série de trabalhos de fotografia e cheguei, por volta dessa altura, a publicar o Livro ‘Tabernas de Lisboa’. Realizei, igualmente, muitos trabalhos no Alentejo. Comecei a ter interesse na fotografia como expressão pessoal e fazia, sobretudo, a chamada fotografia de autor. Queria saber o que podia fazer para dar-lhes uma duração máxima… no fundo o querer guardar as minhas próprias fotografias, o que me levou a ir para os Estados Unidos em 1986. Estive lá três anos, fiz um mestrado em Fotografia de Museu e conservação de fotografia. Quando uma pessoa sai, vai para fora, os horizontes abrem-se. Regressei a Portugal em 1989 já cheio de planos e com alguns contactos.
Foi nessa altura que comecei a trabalhar com a Fundação Calouste Gulbenkian e algumas instituições do Estado no sentido de preservar as suas colecções de fotografia. Em 89, a Gulbenkian tinha acabado de adquirir o espólio do fotografo Mário Novais, que tinha muitas fotografias instáveis, em nitrato de celulose. Formei uma pequena equipa no sentido de organizar e tratar todo esse material, do ponto de vista da conservação. Esta experiência fez-me despertar para o mundo da conservação.
Nessa altura, estava-se num nível ainda muito elementar em Portugal nesse campo. Em Maio de 1990, a Fundação promoveu uns encontros de conservação de fotografia… ainda não existia fotografia digital. Chamámos uma série de peritos internacionais, especialmente dos Estados Unidos. E estabelecemos uma comunidade que reuniu arquivos de todo o país, de museus com fotografia, toda uma série de instituições portuguesas que tinham estado, de algum modo, silenciadas em relação à sua colecção de fotografia e começaram a aparecer e a levantar questões e a querer preservar e divulgar as suas colecções.
Depois, isto alargou-se a outras instituições, nomeadamente a Direcção-Geral do Património Cultural, a Direcção-Geral dos Monumentos Nacionais, e isto foi-se espalhando.
A minha empresa (LUPA Luís Pavão Limitada) foi fundada em 1982: nessa altura, era apenas uma sociedade que eu tinha com o meu pai que se destinava a fazer trabalhos fotográficos, mas foi-se alargando. Chegámos a ter aqui 25 funcionários.
Nos primeiros anos, desenvolvemos trabalhos de fotografia nos domínios de arquitectura, etnografia e ilustração, para clientes particulares (empresas de construção, arquitectos) e Estado (Câmaras Municipais), de que resultaram publicações de pequena dimensão e postais.
Posteriormente, o tratamento de arquivos de fotografia estendeu-se a outras áreas, como a inventariação, a organização e a descrição de colecções de fotografia. A par deste crescimento, surge outra actividade, a reprodução de livros e documentos gráficos, em particular para a Biblioteca Nacional.
Em 1998, iniciámos os trabalhos de digitalização de colecções de fotografia, provas, negativos e diapositivos. Nesta área temos desenvolvido alguma investigação e captado novos clientes. Os grandes projectos de digitalização de fotografia começam a surgir no ano de 2004 e esta área de trabalho tem vindo a crescer até hoje.
Estamos nestas novas instalações, em Lisboa, para onde viemos em 2006, a desenvolver uma linha de acções de formação nas áreas da conservação e descrição de fotografia além de projectos de digitalização e conservação de papel.
Foi responsável por trazer uma nova luz sobre o trabalho do fotógrafo Carlos Relvas. Neste acervo, quais foram os principais desafios encontrados?
Trabalhar a colecção de Carlos Relvas foi extremamente gratificante. Visitei a colecção em 89, e estava em muito mau estado. Depois, transitou para Lisboa, para o Arquivo Nacional de Fotografia, onde uma parte da colecção foi catalogada e tratada.
Quando a colecção regressou à Golegã, a LUPA foi contratada para fazer a digitalização e realizámos esse trabalho durante um ano. Foi tudo feito lá [na Golegã] levando técnicos e equipamentos.
Em conjunto com a autarquia, foi possível instalar, depois, a colecção, num local apropriado. Infelizmente, este espólio não está acessível ao grande público. Os trabalhos de descrição, disponibilização e identificação das imagens está a demorar mais do que o esperado. Foi um trabalho desafiante, uma vez que os negativos ainda não estavam tratados e encontravam-se em muito mau estado: estiveram muitos anos abandonados. Aquela casa esteve fechada 80 anos.

Em 2009, digitalizou mais de 10.000 páginas do Correio da Estremadura e Correio do Ribatejo. Mais recentemente, os restantes números foram também digitalizados. Quais os maiores desafios técnicos de um trabalho desta natureza?
Desde logo pela envergadura do trabalho. São milhares de páginas, cuja digitalização nos colocou algumas dificuldades: desde logo, o processo teria sido mais fácil se os jornais não estivessem encadernados. Existiu uma maior dificuldade em tornar a página plana e, muitas delas acabam por ter alguma curvatura. De um modo geral, o Jornal está em bom estado. Apresenta algumas páginas ‘enrugadas’, outras com pequenos rasgos. A digitalização foi feita com uma resolução de 300 dpi’s. Os jornais maiores têm um formato maior que o A3, o que requereu um trabalho específico.
Assim, foi necessário primeiro fazer todas as páginas ímpares e, posteriormente as pares. O cuidado e atenção neste processo são fundamentais. Em caso de algum engano, depois nada bate certo.
São muitas horas para nos certificarmos que fica tudo bem. É feito todo o processo, entregando, no final, os ficheiros em vários formatos, dependendo da utilização.

Defende medidas específicas para a disponibilização ao público e investigadores, de forma online, para melhor divulgação e conhecimento deste tipo de documentos?
Sim, claramente. Até há uns anos atrás, os jornais eram consultados apenas na biblioteca. Agora, ficarão disponíveis online, podendo as pessoas aceder a partir de casa com toda a facilidade. Há um grande passo em frente no sentido da utilização e divulgação. Acresce que todos estes materiais (papel) são perecíveis e, assim, garantimos a sua salvaguarda.
Hoje, tudo se encaminha para aí. A consulta por via digital é actualmente um grande recurso e todas as bibliotecas do País, começando pela Biblioteca Nacional, tem esse horizonte. Algumas não têm os meios para o fazer e os meios não são dinheiro para mandar digitalizar, mas também para manter as colecções digitais e postos de consulta, permitindo que as pessoas os possam usar. Há aqui todo um mundo de soluções que é preciso criar e, de facto, no nosso País, há museus e bibliotecas ricos e muitos museus e bibliotecas pobres e, alguns, muito pobres…
No meu entender, subsídios e ajudas que vêm da Europa, que em muitos casos são usados pelos ‘grandes’ e ‘poderosos’ que já não precisam tanto, deveriam ser melhor distribuídos.

Sente que, com o seu trabalho, está, de certa forma, a contribuir para a preservação da nossa herança cultural comum?
Sim, sem dúvida. Pelo facto de digitalizarmos, estamos a salvaguardar. E, também, quando se digitaliza, geralmente há um trabalho de conservação que acompanha. Há muitas colecções que recebemos, de fotografias, sobretudo, que precisam de cuidados de conservação e que lhe são ministrados porque há verba para digitalizar. Os negativos que recebemos são limpos, instalados em boas condições, criam-se salas de baixa humidade para os receber, porque há aqui todo um projecto cujo o centro é disponibilizar esses conteúdos em formato digital ao público.

Qual foi o trabalho que lhe ficou na memória e tenha dado mais ‘luta’?
Posso falar-lhe de um trabalho que fizemos no ano passado, que foi a digitalização do acervo da Direcção-Geral do Território, que tem uma colecção de fotografia aérea dos anos 60 e 70 muito grande. São negativos em película de grande formato, são quadrados com 25 centímetros de largura, num suporte instável, que é o acetato de celulose. Recebemos aqui 30 mil desses negativos para digitalizar. De facto, esse foi um trabalho e contributo bom para que aquelas imagens sejam preservadas, porque eles não têm condições ambientais adequadas, não têm um arquivo frio e, portanto, aqueles negativos estão condenados. Neste momento, já estão digitalizados e, portanto, já há uma cópia digital para os preservar. Esse foi um trabalho de facto muito interessante.
Outros trabalhos que temos aqui feito envolvem também colecções de particulares, nomeadamente a conservação e restauro de fotografias de autor. Por vezes de grandes formatos, que nos chegam ou porque apanham água ou porque foram riscadas por uma moldura que se partiu. Lembro-me de um que fizemos, há cerca de três anos: era uma fotografia de grande formato com um metro e cinquenta do fotografo alemão Thomas Struth, muito consagrado, que tinha sido colocada no porta bagagens de um automóvel dentro da moldura. Levou uma pancada, o vidro partiu-se, caiu para cima da fotografia e o automóvel continuou a andar. Logo, todos aqueles vidros que estavam soltos, e até certa altura uns em cima dos outros, deslocavam-se em cima da fotografia, que ficou toda riscada e com pequenos cortes. Veio para o atelier e esteve aqui durante mais de um mês a ser retocada e ficou relativamente bem. Esse foi um trabalho muito interessante, porque quando temos na mão uma fotografia de um grande fotógrafo, daqueles que só ouvimos falar na televisão ou nos catálogos, é uma emoção.
Outro exemplo que posso dar, foi uma fotografia do princípio do séc. XX, um retrato do Rei D. Carlos ao lado do seu cavalo e dos cães de caça, que estava numa casa e é uma fotografia muito grande. Está colada num painel de madeira e tem um metro e vinte por dois metros e meio de altura, uma fotografia enorme. O que não é vulgar naquela época. Um dia, foi preciso reparar uma ficha ou algo parecido e os electricistas encostaram a escada à fotografia para aceder à lâmpada e a fotografia foi danificada severamente. Em dois sítios, foi esmagada. A fotografia esteve aqui e estava já muito, muito retocada, mas conseguimos fazer o restauro. Às vezes, o trabalho maior não é restauro, mas sim os restauros todos que se fizeram no passado e que são calamitosos, em muitos casos. Este trabalho demorou uns três meses.
São trabalhos que nos dão muito gozo, que envolvem muita gente, não é só uma pessoa que faz. A equipa toda, depois, também se envolve emocionalmente no trabalho e dá muito prazer ver as coisas feitas.

Também houve uma grande evolução em termos de equipamentos para restauro e preservação?
Há mais conhecimento agora, conhece-se mais e há, sobretudo, uma ética diferente. Hoje, temos muito mais respeito pelo objecto original e temos muito mais cuidado quando se trata de intervir e mexer. Há uma contenção muito maior, exactamente porque o objecto original deve ser preservado tanto quanto possível. Em outros tempos, intervinha-se sem qualquer cuidado, sem qualquer respeito, com toda a liberdade fazia-se o que se queria e, hoje, não fazemos isso. Actualmente, muitas vezes, consultamos outros conservadores e até gostamos de discutir entre nós – como se fosse uma equipa de médicos – como se pode intervir nesta ou naquela peça sem estar a danificar ou a adulterar, porque a ideia é também não adulterar a verdade e veracidade do objecto original.

FILIPE MENDES

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