Na linha do texto aqui publicado há uns tempos, retomo hoje, ainda que sucintamente, a temática relacionada com as tradições populares vividas intensamente nos dois últimos meses do ano, tempo em que se inscrevem o Dia de Todos os Santos e o Dia de Natal.

Posto que o povo português era muito temente a Deus – mais do que convictamente religioso – cumpria com naturalidade o ritual prescrito pela Igreja, mesmo quando na sua aldeia natal não havia nenhum templo de culto nem a visita regular do pároco. Este ritual era seguido a par de outras tradições e crendices pagãs, pois o povo na sua iliteracia proverbial não tinha acesso a melhor formação doutrinária.

Mesmo assim não faltavam as festividades associadas ao advento nem os preparativos para viver o Santo Natal em paz e harmonia, exultando pela alegria do nascimento do sagrado Salvador, quer através da entoação dos cânticos natalícios, entre os quais os da Natividade, quer na montagem do presépio, especialmente para e com as crianças, o que servia de agradável pretexto para lhes transmitir os valores associados à doutrina cristã.

Mas, para que a festa de Natal pudesse ser mais feliz, e a noite da Consoada mais rica, era necessário tratar de tudo com muita antecedência, pelo que a criação do perú e a matança do porco tinham aqui uma especial relevância e um tempo certo para ocorrer.

Aliás, o provérbio associado ao S. Martinho, tão conhecido de todos, já deixa subentender este calendário – “Pelo S. Martinho, mata o teu porco e prova o teu vinho!”. Ora nem mais.

Como se compreenderá, a matança do porco não poderia ocorrer em tempo quente, posto que então ninguém dispunha de condições para guardar a carne por muito tempo, uma vez que não havia electricidade em casa e ainda estávamos muito longe da era dos frigoríficos e das arcas congeladoras.

Naquele tempo a carne, especialmente os ossos e o toucinho, eram guardados em salgadeiras, arcas de madeira de razoável dimensão, onde se colocavam as carnes com abundante sal, para a preservar pelos meses que se seguiam. Nessa mesma oportunidade eram feitos os enchidos, sobretudo negros e farinheiras, porque os chouriços exigiam mais quantidade de carne magra, o que não abundava. Depois, os enchidos eram colocados em varas no fumeiro da chaminé para defumarem, uma vez que, assim, também durariam mais tempo sem se deteriorarem. 

Nas famílias rurais de antigamente a matança do porco era um dia de grande festa, o que ocasionava o convívio com membros da família mais chegada e até de algumas pessoas por quem se tinha consideração ou a quem se deviam favores e atenções.

Claro, não se podiam alargar muito nos convites posto que a salgadeira estava à espera daquela carne, que deveria dar para alguns meses, pois, em regra, apenas era possível matar um porco por ano.

No princípio do ano, o homem ia à feira comprar um bácoro, animal pequeno, mas que se desejava são e escorreito, capaz de medrar a olhos vistos. Quando chegava a casa era um alarido para a criançada, todos querendo agarrar no pobre bicho como se se tratasse de um brinquedo animado. Impunha-se o pai, aliviando o animal de tanto desassossego, e logo tratava de o acomodar na pocilga, entretanto deixada vaga pelo tempo de S. Martinho ou pelo Natal.

Enquanto era mais pequeno tinha a sorte de andar por alguns espaços de tempo à solta, e sempre ajudava a providenciar a sua alimentação, que era depois reforçada com a lavadura, que consistia em juntar alguns restos da refeição da família, quando os havia, cascas de batatas, folhas de couves, jarros e alguns tomates, melão ou abóbora na época. Como crescia lentamente – bem ao contrário dos tempos actuais em que os porcos crescem meteoricamente, à custa saberá Deus de quê! – ia-se aproveitando a fruta que caía ao chão e, quando havia, não faltava a bolota e o milho, alimento substancial que dava um gosto muito agradável à carne.

Em Fevereiro, no Dia de Santo Antão, pedia-se a bênção ao santo protector dos animais para que nenhuma maleita apoquentasse o porquinho, pois, quando tal acontecia era um terrível constrangimento na vida daquela família.

Em vésperas da matança, os homens da casa iam ao mato roçar tojo para chamuscar o porco após a morte, e, entretanto, já se tinha preparado tudo o que fazia falta neste dia: a tripeça, espécie de mesa onde se matava o porco e se aproveitava o sangue para os enchidos, o chambaril, tronco de madeira em jeito de Vê, onde se pendurava o animal para secarem as carnes e para posteriormente ser desmanchado, o alguidar onde se aproveitava o sangue, que era misturado com vinagre e sal, e um tabuleiro de madeira, onde se aparavam as tripas, que eram depois lavadas pelas mulheres, normalmente, as mais idosas e as mais jovens, pois, este não era um trabalho pesado nem difícil, embora fosse desagradável.

Manhã cedo chegava o magarefe que se juntava aos homens da casa e a alguns dos convidados, para, após tomarem o mata-bicho, seguirem para a pocilga em busca da vítima, que já de véspera não tinha comido para que as tripas estivessem mais limpas. Munido das necessárias facas lá cumpria a sua missão com eficiência e rapidez, pois a experiência era muita. Chamuscava-se, lavava-se com um pedaço de telha ou de tijolo, de tal sorte que a pele parecia barbeada, e alguns mais caprichosos, até puxavam da sua afiada navalha e “barbeavam” todos os pelos resistentes ao fogo e ao tijolo.

Assim que este trabalho estava concluído todos ajudavam a pendurar o porco no chambaril, sendo que, de imediato, o matador o abria de alto a baixo, cortando o externo, e deixando à vista todos os órgãos vitais do animal. Aqui, lembrava-se sempre o velho rifão – “Se queres ver o teu corpo, mata o teu porco!”. Aproveitando a abertura das abas da barriga, lavava-se com vinho branco, colocava-se uma pequena cana para a carne secar mais rapidamente e, para evitar algumas indesejáveis moscas varejeiras, cobria-se o corpo do porco com um lençol branco. 

Para provar a carne, como se dizia, o matador cortava algumas “febras” que eram postas em cima das brasas da fogueira que ardia todo o dia, e as mulheres iniciavam de pronto a lavagem das tripas, trabalho que era mais fácil com a carne ainda quente.

Para o almoço, preparava-se a fressura, pedaços de fígado, de coração e dos pulmões do porco, que era usada em sopa ou em guisado, embora em algumas localidades do nosso país no dia da matança não se comesse nenhuma carne do porco morto. Não faltaria tempo para isso…e a salgadeira estava preparada!

Comia-se, festejava-se a sorte de o animal não ter adoecido, saudava-se a presença dos amigos e convidados e, claro, bebiam-se umas pingas novas, para ajudar a esquecer dias mais difíceis. Garantia-se, assim, a base da alimentação da família para os próximos tempos, o que, nessa época, era uma das grandes inquietações.

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