Longe vão os tempos do copo de três, acessível a todas as bolsas, mesmo às mais magras, quando o vinho servia, tantas vezes, para afogar as mágoas de uma vida difícil e dura. Os patrões davam em vinho o que tiravam da jorna, e também por isso as famílias do campo ribatejano passavam tantas privações.

Agora, que vivemos um novo ciclo na produção vinícola, com castas mais nobres, e se tem investido na produção de melhor qualidade, o vinho é bebida de fidalgo ou de burguês a querer botar figura, pois, chegar a um restaurante e escolher a marca do vinho confere um certo estatuto. Quem diria, que também o vinho viraria bem de consumo destinado aos mais endinheirados! 

Não haja dúvida de que a tradição já não é o que era. Porém, não deixaremos de apreciar o vinho que é produzido no nosso país, mesmo com os novos processos de cultura e de vinificação, e respeitando o sacrifício dos nossos antepassados não queremos deixar de evocar o povo que rebentava nas cavas, nas podas, nas vindimas em jornadas de sol a sol, e nos lagares, em tempo da pisa, pela noite dentro. Povo simples, bom, abnegado, sério, honrado, trabalhador a quem deveremos render sempre as nossas homenagens.

O adagiário popular anda muito associado a esta cultura, pelo que registamos um vasto conjunto de aspectos relacionados com a vivência do povo, que, nesta medida, interessam ao folclore e à etnografia da nossa região. A maior referência à produção do vinho anda intimamente ligada ao S. Martinho, embora, segundo conste, o piedoso santo não fosse um inveterado consumidor de tão precioso néctar, pois, como é sabido, a sua santidade resultou da bondade para com os mais pobres, nomeadamente com um indigente com quem repartiu a sua luxuosa capa, cortando-a ao meio com a espada, para o agasalhar do frio, e, segundo a tradição, por força desta atitude, se espera sempre pelo verão de S. Martinho, para protecção dos que têm pouca roupa e outras maiores necessidades.

Mas neste tempo frio, de Outono, os vinhos já estarão cozidos, como se diz em gíria popular, pelo que é mister fazer a prova, para ver como está de paladar, de acidez e de grau:

Pelo S. Martinho, mata o teu porco e prova o teu vinho!

Este é apenas um entre dezenas ou centenas de outros rifões que estão associados à produção e ao consumo do vinho. Mas, sem querer ser fastidioso, não resisto a citar este outro bem eloquente rifão:

O Vinho dá voz a mudos, vista a cegos e ouvido a surdos!

Não restam dúvidas de que também aqui o povo afirma a sua sabedoria ao resumir tão subtilmente os efeitos da ingestão excessiva do vinho, pois, quando uma pessoa está com um grão na asa, torna-se mais falador, e quase sempre teima que viu ou que ouviu algo que não aconteceu, revelando, assim, tornar-se um pouco desconfiado e até quezilento.

Mas encontramos o vinho ligado ainda às refeições populares, uma vez que antigamente era frequente entre a população rural matar-se o bicho com as “sopas de cavalo cansado”, que mais não eram do que sopas de pão, ensopadas em vinho quente e adoçadas com um pouco de açúcar.

Nas regiões agrícolas, era habitual a realização da “praça das jornas”, local onde se encontravam os camponeses que buscavam trabalho e os pequenos lavradores ou os capatazes das casas agrícolas mais abastadas que necessitavam de contratar alguns trabalhadores para determinada faina e por um certo período. Acertado o valor da jorna, camponês e “novo patrão” selavam o acordo bebendo um copo de vinho, a que se chamava a molhadura. Bebido o vinho, como se costumava dizer, já nenhum dos dois podia voltar com a palavra atrás.

Do mesmo modo, quando um rapazola ganhava pela primeira vez a “jorna” igual à de um homem adulto, tinha de “pagar a patente”, o que significava que teria de pagar a cada um dos seus companheiros de jornada um copo de vinho, assinalando, assim, a passagem a um estatuto mais bem remunerado.

Mas, lembrando o S. Martinho não poderemos olvidar-nos da matança do porco, que ocorria antigamente por esta época. Nas famílias rurais a matança do porco era um dia de grande festa, o que ocasionava o convívio com membros da família mais chegada e até de algumas pessoas por quem se tinha consideração ou a quem se deviam favores e atenções.

No princípio do ano, o homem ia à feira comprar um bácoro, animal pequeno, mas que se desejava são e escorreito, capaz de medrar a olhos vistos. Quando chegava a casa era um alarido para a criançada, todos querendo agarrar no pobre bicho, como se se tratasse de um brinquedo animado. Impunha-se o pai, livrando o animal de tanto desassossego, e logo tratava de o acomodar na pocilga, entretanto deixada vaga pelo anterior pelo S. Martinho ou pelo Natal.

Enquanto era mais pequeno tinha a sorte de andar por alguns espaços de tempo à solta, e sempre ajudava a providenciar a sua alimentação, que era depois reforçada com a lavadura, que consistia em juntar alguns restos da refeição da família, quando os havia, cascas de batatas, restos de couves, jarros e alguns tomates, melão ou abóbora na época. Como crescia lentamente – bem ao contrário dos tempos actuais em que os porcos crescem meteoricamente, à custa saberá Deus de quê! – ia-se aproveitando a fruta que caía ao chão e, quando havia, não faltava a bolota e o milho, alimento substancial que dava um gosto muito saboroso à carne.

Pelo Santo Antão pedia-se a bênção ao santo protector dos animais, para que nenhuma maleita apoquentasse o porquinho, pois, quando tal acontecia era um terrível percalço na vida daquela família.

Em vésperas da matança, pai e filhos iam ao mato roçar mato para chamuscar o porco após a morte, e, entretanto, já se tinha preparado tudo o que fazia falta neste dia: a tripeça, espécie de mesa onde se matava o porco e se aproveitava o sangue para os enchidos, o chambaril, tronco de madeira em jeito de Vê, onde se pendurava o animal para secarem as carnes e para ser desmanchado, o alguidar onde se aproveitava o sangue, que era misturado com sal e vinagre, e um tabuleiro de madeira, para onde se recolhiam as tripas, que eram depois lavadas pelas mulheres mais idosas e pelas mais jovens, pois, não era trabalho pesado, embora desagradável.

Mal nascia o Sol chegava o magarefe que se juntava aos homens da casa e a alguns dos convidados, para, após tomarem o mata-bicho, seguirem para a pocilga em busca da vítima, que já de véspera não tinha comido, para que as tripas estivessem mais limpas. Munido das necessárias facas, lá cumpria a sua missão com eficiência e rapidez, pois a experiência era muita. Chamuscava-se, lavava-se com um pedaço de telha ou de tijolo, de tal sorte que a pele parecia barbeada, e alguns mais caprichosos, até puxavam da sua afiada navalha e “barbeavam” todos os pelos resistentes ao fogo e ao tijolo.

Assim que este trabalho estava concluído todos ajudavam a pendurar o porco no chambaril, sendo que, de imediato, o matador o abria de alto a baixo, cortando o externo, e deixando à vista todos os órgãos vitais do animal. Aqui, lembrava-se sempre o velho rifão – “Se queres ver o teu corpo, mata o teu porco!”. Aproveitando a abertura das abas da barriga, lavava-se com vinho branco, colocava-se uma pequena cana para secar mais rapidamente a carne e, para evitar algumas indesejáveis moscas varejeiras, cobria-se o porco com um lençol.

Para provar a carne, como se dizia, o matador cortava alguns pedaços de febra que eram postos em cima das brasas da fogueira que ardia todo o dia, e as mulheres iniciavam de pronto a lavagem das tripas, trabalho que era mais fácil com a carne ainda quente.

Para o almoço, preparava-se a fressura, pedaços de fígado, de coração e dos pulmões do porco, que era usada em sopa ou em guisado, embora em algumas localidades da nossa região não se comesse nenhuma carne do porco no dia da matança. Não faltaria tempo para isso…e a salgadeira e o fumeiro lá estavam à espera!

Comia-se, festejava-se a sorte de o animal não ter adoecido, saudava-se a presença dos amigos e convidados e, claro, bebiam-se umas pingas novas, para ajudar a esquecer dias mais difíceis. Garantia-se, assim, a base da alimentação da família para os próximos tempos, o que, nessa época, era uma das grandes inquietações.

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