Quando atravessamos fases um pouco mais atribuladas na nossa vida logo tentamos animar-nos pensando que “não há mal que sempre dure”, o que faz contraponto com outros ciclos mais benignos em que tentamos moderar-nos lembrando que “não há bem que não acabe”.

Consabidamente o povo português é especialmente dado à sabedoria assente na riqueza dos adágios populares, por razões sobejamente conhecidas e que já aqui tratámos em outras ocasiões. Não é o caso de agora, em que nos propomos abordar outras questões, bem mais complexas, aliás, e que tanto afectam a nossa vida colectiva. 

Não tenho formação académica na área das ciências económicas, mau grado ter passado mais de metade da minha vida a lidar com números, mas não é este facto que me impede de analisar, enquanto leigo, mas, sobretudo, como cidadão livre e consciente dos seus direitos e obrigações, a estratégia que o Banco Central Europeu (BCE) tem vindo a implementar como forma de reduzir substancialmente os actuais valores da inflacção, muito por conta dos problemas que esta situação acarreta para a maioria dos cidadãos europeus e, especialmente, dos portugueses, posto que somos dos mais pobres da Zona Euro.

Opinam os especialistas, seguindo escrupulosamente os manuais de boas práticas à luz dos conceitos mais seguidos, que a melhor terapia para combater a inflacção é agravar as taxas de juro, pelo que o BCE, a que preside a Senhora Christine Lagarde – de tão má memória para Portugal durante o período de assistência da Troika, tempo em que a mesma presidia ao famigerado Fundo Monetário Internacional (FMI) – opta por prosseguir inflexivelmente esta estratégia. 

Mesmo não sabendo muito de economia, compreendo que um dos factores que mais impactam na inflacção é a subida dos preços nas transacções comerciais efectuadas pelas famílias ou pelas empresas, pelo que percebo que nesta linha de orientação do BCE, o agravamento do poder de compra dos cidadãos é meio caminho andado para ajudar a combater a inflacção. Ou seja, se as pessoas não tiverem dinheiro para gastar a inflacção tenderá a reduzir!

Esta estratégia lembra-me a história do burro do espanhol que para poupar começou a cortar na ração do pobre animal, o qual, ao fim de umas semanas, por tão pouco comer acabou por morrer esfaimado e raquítico. Lamentava-se, então, o pobre homem da sua desdita, pois justamente quando o burro se estava a habituar a não comer é que havia de morrer!

Assim, acreditará a Senhora Lagarde que a inflacção se resolverá em Portugal à medida que os portugueses forem morrendo à míngua de alimentação, pois desta forma o volume de transacções comerciais tenderá a baixar substancialmente. É que a Presidente do BCE aconselha os Governos da Zona Euro a reduzir os apoios pontuais às famílias e às empresas e, do mesmo modo, a praticarem uma rigorosa contenção dos salários, para que as famílias não sintam alguma folga nos respectivos orçamentos e desatem a gastar à tripa forra.

A Senhora Christine Lagarde deve ter nascido em berço de oiro, pois não evidencia a menor sensibilidade social para com os mais pobres e o facto de sempre haver ocupado cargos de relevantíssimo estatuto social e político, auferindo salários principescos, não lhe dá consciência do que diz nem do esforço que exige aos mais pobres.

Os salários médios praticados em muitos países da União Europeia permitem acolher sem grandes sacrifícios o aumento das taxas de juro definidas pelo BCE, as quais constituem referencial para os créditos, especialmente os da habitação, porém tal não é o que ocorre em Portugal onde o salário médio é metade, ou menos, dos salários no Luxemburgo, na Holanda, na Alemanha ou na Dinamarca e noutros países com um nível de desenvolvimento bem superior ao de Portugal.

O recente aumento da taxa Euribor que tem impactado tão violentamente no poder de compra dos portugueses não é sentido da mesma maneira nos países onde os rendimentos profissionais são mais justos, e é esta situação que não deve / pode escapar ao escrutínio de quem ocupa tão relevantes funções. O que, de resto, nem é novidade para nós pois durante o período em que o nosso país esteve sob assistência financeira da Troika, Christine Lagarde era presidente do FMI e usou da mesma agressividade com o nosso país, impondo-nos medidas de austeridade insustentáveis e que, aliás, vieram a comprovar-se inadequadas e prepotentes.

Uma taxa de juro de 3,5% pode não ser especialmente elevada, pois todos nos lembramos de taxas superiores a 15 e até a 20%, porém, onde o gato vai às filhoses é nos países de salários mais baixos. Passo a exemplificar para ser mais claro. Se uma família (marido, mulher e um filho) levar para casa ao final do mês 1.600 euros e tiver em curso um crédito à habitação de 150.000 euros por um prazo de trinta anos, contratado a uma taxa nominal de 1%, com um spread de 0,75%, tem uma prestação mensal na ordem dos 400 euros. O que é suportável, pelo que o crédito lhe foi concedido pela instituição bancária. 

Quando o BCE aumenta a taxa Euribor para 3,5% a prestação sobe para cerca de 700 euros, pelo que este casal já só fica com 900 euros disponíveis para fazer face às restantes despesas familiares – alimentação, água, electricidade, comunicações, transportes, educação do filho, vestuário e saúde, a que acrescem os respectivos impostos. Convenhamos que esta situação não é nada confortável.

Agora se outra família, com a mesma composição, levar para casa ao final do mês um salário de 3.000 euros, o agravamento da prestação do crédito à habitação de 400 para 700 euros, é facilmente acomodável, e o valor remanescente permite a esta família continuar a viver com alguma tranquilidade.

Mas, se estas realidades são bem diversas para as respectivas famílias, parecem ser idênticas para a Senhora Lagarde, o que denuncia uma lamentável falta de sensibilidade social para quem exerce uma função tão relevante no seio da União Europeia. Os Estados membros da União Europeia consignam-lhe através de legislação o poder de definir a política monetária da Zona Euro, porém não lhe conferem o direito de se imiscuir na política orçamental de cada Estado.

Dir-se-á, assim, que o problema até poderá não assentar exclusivamente na política monetária, que impõe o agravamento das taxas do BCE, mas antes no imperativo de aproximar os rendimentos de trabalho dos portugueses dos salários dos restantes europeus, o que exige a aplicação de um conjunto de reformas estruturais que permitam a implementação dessa política.

E, em bom rigor, até não poderemos invocar dificuldades financeiras de uma parte das empresas portuguesas, que apesar de apresentarem lucros milionários investem uma percentagem mínima nos encargos salariais e que, desavergonhadamente ainda têm o desplante de em circunstâncias festivas considerarem que o melhor activo das suas empresas são as pessoas! É preciso descaramento!

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