Engenheira do Ambiente com mais de três décadas de carreira, Maria João Cardoso assume a presidência do Rotary Clube de Santarém com um programa centrado na saúde, no ambiente e na valorização das relações humanas. Em entrevista ao Correio do Ribatejo, defende a acção como forma de voluntariado consciente, destaca o papel das novas gerações e lança o projecto interclubes “Solidão Não”, que pretende dar visibilidade ao isolamento sentido por jovens adultos. Focada em preservar o legado do clube e fortalecer os laços entre os membros, afirma: “somos raízes — e é a partir delas que se constrói comunidade”.

Assume agora a presidência do Rotary Clube de Santarém. Que significado pessoal tem para si este desafio e como encara a responsabilidade de liderar um clube com mais de seis décadas de história?

É uma honra ter sido convidada para integrar este movimento e, mais tarde, eleita por unanimidade pelo Conselho Director, há dois anos, para assumir agora a presidência do Rotary Clube de Santarém — um clube com 62 anos de história. Sinto que estou a concretizar um sonho: ser uma voluntária líder ao serviço do bem comum, numa área que me é muito próxima — o ambiente e o desenvolvimento sustentável, que é precisamente a sétima área de enfoque do Rotary Internacional.

Criei o projecto Eco-Rota dentro do movimento rotário e identifiquei-me, desde o início, com os seus princípios. A chamada “prova quádrupla” do Rotary exige maturidade, ética e sentido de responsabilidade. Este movimento é feito por profissionais que já têm obra feita, com capacidade de liderança positiva. Ao longo do tempo, construí relações de companheirismo que se transformaram em amizades sólidas e profundas, tanto no nosso clube como com outros companheiros.

Sou engenheira do ambiente com mais de 30 anos de carreira, e sempre trabalhei para o bem comum. Nem sempre é fácil passar essa mensagem na sociedade, mas no Rotary encontrei um espaço privilegiado de acção — um movimento feito de líderes em voluntariado que, apesar das exigências profissionais, dedicam tempo e energia a projectos concretos para as comunidades locais e globais. Isso distingue-nos como movimento voluntário: somos pessoas activas, com responsabilidades, mas com uma forte vontade de fazer a diferença.

É a segunda mulher a presidir o Rotary Clube de Santarém. Como vê essa crescente importância das mulheres no movimento? E como encara esta transição, tendo em conta que, historicamente, havia espaços diferenciados como a Casa da Amizade, destinada às esposas dos rotários?

Penso que devemos olhar para esta questão com naturalidade. Homens e mulheres fazem parte de um todo e ambos têm contributos valiosos a dar, sobretudo num movimento voluntário como o Rotary, onde se valoriza o mérito profissional.

Nos tempos antigos, pelas características da sociedade, era mais comum que as mulheres estivessem centradas na vida familiar e menos visíveis no espaço público e profissional. Isso foi mudando, e hoje é fundamental que o papel da mulher seja reconhecido também nestes contextos.

A eleição da primeira mulher como presidente do nosso clube foi um marco importante. O facto de agora termos uma segunda mulher eleita para esse cargo — no meu caso — já reflecte uma mudança cultural, o que é ainda mais relevante. Essas mudanças não se fazem de um dia para o outro. Exigem tempo, abertura e reconhecimento de que também há mulheres com percursos profissionais de excelência, capazes de liderar com visão e empenho.

No meu caso particular, enquanto engenheira do ambiente — uma área que durante muito tempo precisou de afirmação e sensibilização — esta eleição ganha ainda mais sentido, porque estou ligada à última área de enfoque criada pelo Rotary Internacional: o ambiente. É um sinal de que o clube reconhece que as mulheres, nas mais diversas profissões, têm um contributo valioso a dar à construção de um mundo melhor.

Acresce que encaro esta presidência com uma responsabilidade acrescida. Não por ter de provar algo, mas porque acredito profundamente no trabalho em equipa, na valorização do passado e na construção de um futuro mais coeso e comprometido. É por isso que o lema que escolhi para este mandato é: “Honrar o passado, unidos no presente, construímos um futuro próspero.”

Quais são as áreas estratégicas e de intervenção prioritária definidas para este mandato? Há alguma iniciativa emblemática que gostaria de destacar?

O programa do Rotary Clube de Santarém para 2025-2026 começou a ser delineado com bastante antecedência, logo após a minha eleição há dois anos. Isso permitiu estruturar bem o Conselho Director e criar as comissões de trabalho. Pela primeira vez, criámos uma Comissão de Prevenção em Saúde, coordenada pelo companheiro Francisco Infante, médico de profissão — o que demonstra a nossa preocupação com temas de grande actualidade.

Temos oito comissões activas, além dos membros do Conselho Director, o que mostra uma forte mobilização dos nossos talentos em diferentes áreas. Esta estrutura traduz-se numa acção coordenada, orientada pelas sete áreas de enfoque do Rotary, adaptadas à realidade local. A nossa prioridade é unir os sócios, promover o companheirismo e criar condições para que todos participem activamente nas reuniões e nos projectos.

Um dos projectos mais emblemáticos para este ano chama-se “Solidão Não”. É um projecto interclubes que envolve o Rotary Clube de Santarém, o Rotary Clube da Estrela e o Rotary Clube de Algés. A inovação está no foco: não vamos abordar a solidão habitual associada ao envelhecimento, mas sim a solidão entre os jovens adultos — dos 18 aos 30 anos — em início de vida universitária ou profissional. Queremos trazer esta realidade para a agenda pública, com base em investigação científica que confirma que a solidão nesta fase da vida tem consequências graves, inclusive a nível da saúde mental.

Vamos envolver os clubes Rotaract neste processo, aplicar questionários em instituições de ensino superior e desenvolver um trabalho próximo com universidades, politécnicos e associações académicas. Já há estudos relevantes da Universidade de Évora e da Universidade de Maastricht que nos inspiraram. Acreditamos que este projecto pode ter impacto real nas comunidades e é uma forma concreta de aproximar os jovens do movimento rotário.

Ao mesmo tempo, queremos dar continuidade a outras áreas de intervenção fundamentais, como a saúde preventiva e a sensibilização para a vacinação, incluindo junto de comunidades imigrantes. E vamos manter os projectos de atribuição de bolsas de estudo e prémios escolares — pilares essenciais do nosso clube.

O projecto “Solidão Não” envolve três clubes rotários e parece marcar uma nova abordagem intergeracional. Como nasceu esta iniciativa e que papel terão os mais jovens neste processo?

Este é, de facto, um projecto interclubes que reúne os Rotary Clubes de Santarém, da Estrela e de Algés, e tem a particularidade de ser transversal e inovador. Há muito tempo que não se fazia um trabalho articulado entre clubes com envolvimento activo dos sócios e dos Rotaract — que são clubes autónomos, mas com ligação directa ao movimento rotário sénior.

O foco está na solidão entre os jovens adultos — aqueles que iniciam a universidade ou a sua primeira experiência profissional. A ideia surgiu da observação de sinais crescentes de isolamento, agravados pela dependência digital e pela dificuldade em estabelecer relações humanas profundas. Identificámos esta realidade e, com base em investigações académicas recentes, como as da Universidade de Évora e de Maastricht, percebemos que a solidão nesta faixa etária pode ser tão silenciosa quanto perigosa.

Queremos ouvir os jovens, recolher dados, debater o tema em conferências e palestras, envolver os Rotaract e trabalhar com instituições de ensino superior. No fundo, trata-se de criar pontes entre gerações e reforçar o espírito de comunidade, dentro e fora do movimento rotário.

Este projecto reflecte também a direcção estratégica do nosso Governador Distrital eleito, Jorge Lucas Coelho, que tem como prioridade o envolvimento da juventude e a revitalização do companheirismo interclubes. A nossa função, como rotários, é criar espaços de escuta e acção, e este projecto é um exemplo claro dessa missão.

Além da juventude, também a saúde e o ambiente parecem estar no centro das prioridades para este ciclo rotário. Como pretende integrar essas áreas nos projectos do clube?

A saúde e o ambiente são, de facto, dois eixos fundamentais do nosso plano de acção. Desde logo, porque estão entre as áreas de enfoque do Rotary Internacional, mas também porque são áreas com impacto directo na qualidade de vida das comunidades.

Na área da saúde, o clube pretende desenvolver campanhas de sensibilização, particularmente no domínio da vacinação. Temos companheiros ligados à área médica e pretendemos que o Rotary Clube de Santarém seja um canal activo na difusão de mensagens relevantes. A realidade das populações imigrantes, por exemplo, levanta questões específicas em matéria de vacinação, e cabe-nos contribuir para informar e esclarecer.

Já na vertente ambiental, queremos continuar a apostar na educação para a sustentabilidade e no simbolismo de acções concretas. Um exemplo disso foi o gesto realizado durante a cerimónia de transmissão de tarefas, onde cada comissão recebeu uma oliveira — símbolo da paz e da amizade. A ideia é que essas árvores sejam plantadas ao longo do ano, em parceria com instituições locais, escolas e organizações da sociedade civil. Este gesto está profundamente ligado ao espírito do fundador do movimento, Paul Harris, que costumava oferecer árvores como símbolo de amizade sempre que visitava um clube.

Estas acções reflectem a nossa visão: criar raízes sólidas no presente, honrar a história do clube — que fará 62 anos a 20 de Setembro — e preparar um futuro onde o Rotary continue a ser um agente activo na promoção do bem-estar e da consciência ambiental.

Na sua opinião, quais são actualmente os maiores desafios para manter vivo o espírito rotário e captar novos membros para o clube?

Vivemos tempos de relações humanas fragilizadas. A sociedade atravessa um momento pouco humanista, marcado por uma comunicação excessivamente digital, onde a proximidade é muitas vezes ilusória. As novas tecnologias aproximam-nos em termos de acesso, mas afastam-nos no plano relacional. E isso nota-se, sobretudo, entre os mais jovens — a geração que queremos ouvir no projecto “Solidão Não”.

Muitos desses jovens cresceram sem a experiência da convivência presencial: de esperar à porta de casa por amigos, de dizer “vem brincar comigo”, de olhar nos olhos. Essa ausência de contacto humano tem consequências nas relações futuras. E também nos torna mais sós quando envelhecemos, porque não criámos laços sólidos ao longo da vida.

O Rotary pode ser um espaço para contrariar esta tendência. Um espaço onde abrimos o coração, usamos os nossos talentos em prol da comunidade, partilhamos experiências e maturidade. Não se exige um currículo académico brilhante, exige-se vontade e sentido de missão. E todos são bem-vindos: os mais jovens com energia e visão, os mais experientes com sabedoria e profundidade.

O nosso desafio é precisamente esse: mostrar à sociedade que o Rotary é um espaço de acção concreta, de amizades duradouras, de partilha entre gerações. Queremos que cada novo membro se sinta parte de um movimento vivo, com propósito, com valores. E esse convite estende-se a todos — desde que venham com boa vontade, com espírito de equipa, com vontade de fazer obra nas comunidades do mundo.

Como está a ser assegurada a ligação aos sócios que estão fora do país ou que, por motivos profissionais ou de saúde, não podem estar fisicamente presentes nas reuniões do clube?

Temos essa preocupação muito presente. Embora valorizemos profundamente o contacto presencial — porque é nos afectos, no estar junto, que se constrói verdadeiramente o espírito rotário — também reconhecemos que há companheiros cujas circunstâncias exigem soluções adaptadas.

Temos, por exemplo, companheiros que estão em missão no estrangeiro, como na ONU, em Angola ou em vários países europeus. Outros têm obrigações profissionais que os levam a viagens constantes. Nesses casos, asseguramos sempre a possibilidade de participação à distância, com acesso online às reuniões — que continuam a realizar-se às terças-feiras, às 21h30, na nossa sede.

No entanto, o objectivo mantém-se claro: privilegiar o modelo presencial, criando momentos de partilha genuína, de convivência, de companheirismo real. O movimento rotário é feito de pessoas e para pessoas. Como mulher de afectos e engenheira do ambiente, acredito profundamente na importância das relações humanas. É isso que quero preservar neste mandato — criar laços, fortalecer vínculos, cultivar a presença.

Que mensagem gostaria de deixar aos leitores do Correio do Ribatejo sobre o papel do Rotary e o contributo que cada cidadão pode dar à sua comunidade?

O Rotary é um movimento com 120 anos de história a nível internacional e mais de um século de presença em Portugal. Reúne mais de um milhão e duzentos mil líderes em acção, unidos por um propósito comum: servir o bem das comunidades locais e do mundo. É um movimento com valores claros, com provas dadas, e com um legado que merece ser honrado.

O lema que escolhi para este mandato — “Honrar o passado, unidos no presente, construímos um futuro próspero” — é também um convite a todos os que se identifiquem com esta missão. Qualquer cidadão, independentemente da sua área profissional, pode ser um agente de mudança. Basta que tenha vontade, sentido de serviço, espírito de amizade e desejo de colocar os seus talentos ao serviço do bem comum.

Sou mãe, tenho filhos que ainda precisam muito de mim, tenho uma carreira exigente, e ainda assim encontrei no Rotary um espaço onde posso cumprir uma missão maior. Porque acredito que é possível conciliar a vida pessoal e profissional com o voluntariado, desde que exista vontade e organização. E sei que há muitas pessoas assim: com talento, com maturidade, com sentido de responsabilidade, prontas a dar um pouco do seu tempo.

O Rotary precisa dessas pessoas. Pessoas que queiram construir pontes, criar relações, fazer parte de uma comunidade activa. Queremos continuar a envolver os mais jovens, através do Rotaract, e acolher todos os que, com experiência ou juventude, tenham o coração no sítio certo. Somos um movimento pela paz, pela amizade e pela acção. E é por isso que continuaremos a plantar árvores — como a oliveira, símbolo da paz — e a criar raízes sólidas na nossa terra, com os nossos companheiros, com as nossas comunidades.

Filipe Mendes

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