Fazer a ponte entre o passado e o futuro foi o propósito de um encontro que cruzou diferentes perspectivas acerca da ‘Revolução de Abril’, que decorreu na passada quinta-feira, dia 22, no Teatro Taborda, em Santarém.
Sob o mote “25 de Abril – Passado, Presente e Futuro”, o debate, moderado pela Historiadora Teresa Lopes Moreira juntou o Capitão de Abril, Correia Bernardo, Celestino Brasileiro, filho do histórico do PCP Álvaro Brasileiro, o estudante de medicina Pedro Santos e a docente de artes Sara Gabriel.
“O que nos junta hoje é o propósito de conversar sobre o 25 de Abril, 47 anos depois. Debater o passado, as nossas memórias colectivas durante o Estado Novo. Reflectir sobre o presente, como olhamos hoje para o 25 de Abril e o que esperamos do futuro, o que esperamos daqui a 47 anos, das novas gerações nascidas depois do 25 de Abril”, enquadrou a moderadora.
“Muitas vezes, aquilo que tem sido escrito pelos novos historiadores nem sempre é um relato completamente imparcial”, disse ainda Teresa Moreira., lançando o primeiro convidado, Celestino Brasileiro, cujas memórias dos tempos de repressão ainda estão bem vivas.
“Eu tinha quatro anos quando o meu pai foi preso pela primeira vez e ainda guardo uma ideia das visitas à prisão, sobretudo em Caxias. Tinha 14 anos quando se deu o 25 de Abril e já tinha uma perfeita noção do que era ter tido um pai preso por motivos políticos. Muitas outras memórias que tenho são das histórias que os meus pais contavam”, começou por dizer Celestino.
Desses tempos, o filho de Álvaro Brasileiro, histórico militante do PCP que se destacou pela sua dedicação à luta antifascista na Resistência, recorda “as imensas dificuldades” da família que subsistia das searas de melão.
“Eram tempos muito difíceis, os meus pais foram sempre operários agrícolas e depois de casarem passaram a fazer seara de melão, durante o Inverno, quando havia trabalho. Com a prisão do meu pai, a minha mãe passou a ter uma vida, naturalmente, mais difícil. A ter que trabalhar para sustentar a casa, com um filho pequeno. Ela continuou a fazer a seara de melão nos quase dois anos em que o meu pai esteve detido”, recordou.
Álvaro passou pelas prisões de Aljube e de Caxias. Julgado no Tribunal Plenário de Lisboa, foi condenado a 16 meses de prisão e a cinco anos de perda de direitos cívicos.
“Foi aí que se sentiu a tal solidariedade das pessoas de Alpiarça. Havia uma grande solidariedade para com os presos políticos. Estamos a falar de uma terra que teve largas dezenas ou centenas mesmo de presos políticos”, disse, revelando que uma das memorias mais vivas que tem da prisão do seu pai é a das dificuldades vividas pela mãe.
“Ela era camponesa, operária, praticamente não conhecia Lisboa e muitas vezes tinha que lá ir sozinha, nem sempre tinha boleia, por vezes ia acompanhada, até porque estavam lá outros presos políticos na altura, em Caxias. Ás vezes lá iam duas ou três pessoas e acabava por ser mais fácil, mas teve que ir também, muitas vezes sozinha. De combóio, camioneta, táxi… fosse como fosse tinha que lá ir”.
Depois de cumprida a pena, as dificuldades não cessaram, conforme relatou: “Os problemas depois do meu pai sair da prisão acabaram por ser outros. O medo da perseguição foi sempre contínuo, logo que o meu pai foi posto em liberdade”.
“Sobretudo em datas mais marcantes como o 1º de Maio ou o 5 de Outubro… nessas alturas, havia as acções da Pide, que eram mais violentas, mais agressivas sobre pessoas que estavam referenciadas”, afirmou, acrescentando que, nessas datas, o pai tinha de “desaparecer” alguns dias de casa, “para não ser preso”.
“Essa perseguição afectava todos lá em casa, não só o meu pai. Claro que o alvo era o meu pai, mas todos acabaríamos por sofrer um pouco com isso”, rememorou.
“No dia 23 de Abril de 1974, eu estava na escola e os meus pais tinham acabado de sair para Vila Franca para o meloal. Depois, vim a saber que passadas duas horas dos meus pais terem saído, tinha ido a GNR à minha casa. Coisa boa eles não deviam querer. Imagino que o objectivo fosse que o meu pai voltasse à prisão”, lembrou.
“Na altura”, continuou, “não havia forma de contactar. Então, tive que falar com um amigo meu que tinha uma motorizada e que se deslocou imediatamente a Vila Franca para avisar o meu pai. Na noite de 23 para 24 o meu pai já não ficou na sua barraca, onde ficava durante os 5 ou 6 meses em que estavam a tratar do melão”, contou.
“No dia 24 de Abril, já se via a GNR a cavalo pelos campos de Vila Franca. Confirmou-se, então, a informação que haviam pessoas referenciadas para serem presas”, disse, acrescentando: “Felizmente, no dia seguinte, graças aos nossos Capitães, deu-se o 25 de Abril e ele já não foi preso… Sem a revolução, provavelmente ele seria preso de novo, não só o meu pai, mas um conjunto de pessoas de Alpiarça”.
Após este “período negro”, ao qual o 25 de Abril veio colocar um ponto final, Celestino Brasileiro diz ter sentido um “enorme alívio”, mas, “com ou sem medo, o meu pai continuou sempre a sua luta, continuou sempre a reivindicar os seus direitos de Liberdade e Democracia.
Apesar de todas as dificuldades e provações, Celestino afirmou que tudo isso “valeu a pena”, por todas as transformações que o nosso país viveu.
“Apesar de haver alguns retrocessos em relação a algumas coisas, não há dúvida nenhuma que as pessoas vivem melhor hoje. Eu sei o que foi viver nessa época, e sei o que é viver agora. Sei o que os meus pais sofreram, e que eu tive mais facilidade em criar os meus filhos. Apesar de todos os problemas que possam existir, valeu a pena. A democracia não é um sistema perfeito, mas é o melhor que temos. Valeu a pena que tivesse acontecido o 25 de Abril e que pessoas como o meu pai tivessem lutado também para que esse dia pudesse chegar. Valeu a pena o sacrifício que todos fizemos”, concluiu.
Um estratega da Democracia
Joaquim Correia Bernardo foi o homem que planeou ao detalhe a participação da Escola Prática de Cavalaria (EPC) de Santarém na revolução de 25 de Abril de 1974.
A publicação do decreto-lei n.°355/73, de 13 de Julho, vem encontrá-lo na chefia do Gabinete de Estudos da EPC e é no exercício dessas funções que acompanha o desenrolar dos acontecimentos que culminam no “25 de Abril de 1974”, organizando e coordenando toda a acção da EPC, no seio do Movimento dos Capitães.
Na sua leitura, a Guerra Colonial desgastou o regime e criou um ‘húmus’ para a revolução: foi uma altura devastadora para todos os sectores da sociedade: económico, político, social e culturalmente… durante os 13 longos anos em que os portugueses foram sujeitos a conflitos armados, e as suas famílias condicionadas à dolorosa incerteza de verem os seus filhos de volta a casa.
“Este período da Guerra decorre, simultaneamente, com a pressão que existia em Portugal: um período muito difícil da nossa história contemporânea. Tínhamos cerca de meio milhão de jovens em luta em África e a correspondente família cá, angustiada e sofrida”, disse Correia Bernardo, considerando importante dar a conhecer estes aspectos.
Nesta mesa-redonda, explicou que “Santarém estava destinada a ser o pólo de resistência, no caso de a Coluna de Salgueiro Maia ter que regressar”: o ‘Golpe das Caldas’, que teve lugar na madrugada de 16 de Março de 1974, e que era suposto juntar diferentes unidades militares espalhadas pelo País, e que acabou por se limitar ao Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, “foi espoletado antes do tempo, mas serviu de balão de ensaio para o 25 de Abril”.
“Esse golpe falhado serviu para que nos preparássemos melhor”, referiu, revelando que, na madrugada de 25 de Abril, foi preparada a defesa da Escola Prática de Cavalaria (EPC) e “seis pontos estratégicos da cidade foram fortificados”, entre os quais a zona da Rafoa, do Moinho de Fau, do Cemitério, das Portas do Sol e São Bento.
“Era para ir até ao fim e a hipótese que havia era Santarém resistir. Na análise que fiz, Santarém tinha todas as potencialidades para ser uma cidade de resistência, não só pelo valor geográfico em termos militares – situar-se num planalto e estar rodeada de povoações e vilas que davam garantias de apoio à resistência -, mas também pela gente que tínhamos a certeza de que estaria ao nosso lado e inclusive disposta a apoiar”, acrescentou.
A par disso, o Movimento de Capitães preparou a forma como iria dar a conhecer à população o que se estava a passar: “os habitantes da cidade foram os primeiros a ter conhecimento da situação”, afirmou.
Desses “oito a nove meses de preparação” da revolução, Correia Bernardo guarda ainda memória da “cumplicidade” e de “uma certa intimidade” com Salgueiro Maia, o recruta “reguila” que questionava constantemente os instrutores e com quem veio neste período a partilhar o “fervor, a vontade, a sua grande fé de que desta é que era”.
“Foi uma das coisas que me marcaram, foi essa perseverança dele e esse estigma ‘nós não podemos andar a brincar às revoluções’. Esta é que tem que ser e essa vontade levou-a para Lisboa” na madrugada de 25 de Abril de 1974, quando comandou a coluna que saiu de Santarém e teve um papel decisivo no desenrolar dos acontecimentos em Lisboa, nomeadamente na rendição do presidente do Conselho Marcelo Caetano, comentou.
“Não há dúvida nenhuma que foi da cidade de Santarém que saiu a unidade que foi protagonista de todos os actos importantes que decorreram no 25 de Abril – isto sem tirar mérito às unidades que saíram do Algarve, ou do Minho, por exemplo. De facto, o protagonismo principal contra as forças do Governo, no Terreiro do Paço, e na rendição do executivo no Quartel do Carmo, foi feita pela unidade da EPC”, afirmou Joaquim Manuel Correia Bernardo, licenciado em Ciências Militares pela Academia Militar.
“Se voltássemos no tempo, teria feito tudo tal e qual… poderia corrigir num aspecto ou outro, mas teria feito a mesma coisa, com o mesmo espírito de abrir uma janela muito grande para deixar entrar a liberdade e deixar entrar a democracia”, afirmou.
“Não há uma consciência efectiva do que é a censura”
Sara Gabriel já nasceu após o 25 de Abril de 1974. Para a professora de Teatro, natural de Santarém, os tempos de ditadura “não são uma experiência vivida, mas sim um conjunto de histórias” que ouviu, principalmente do tio e bisavô, ambos presos políticos.
“Eu ainda tive esse contacto mas, no caso dos meus alunos, este tema ainda é mais distante. Não há uma consciência efectiva do que é a censura e das dificuldades de viver com esse medo”, afirmou, acrescentando: “com isso, acaba por haver uma dificuldade de perceber a importância desses valores, de poder criar e viver em liberdade”.
Assim, na perspectiva da docente, torna-se “essencial” passar esses valores às novas gerações, no sentido de lhes dar “uma experiência emocional”.
“Através do ensino, os alunos conseguem perceber e criar uma imagem lógica do que foi o 25 de Abril, mas, acima de tudo, falta esse lado emocional”, analisou.
“As artes são, por si só, um movimento libertador, de nos podermos projectar numa obra. Através do ensino, não só da história, mas do ensino artístico poderemos dar a importância devida a esses valores”, considerou.
“Os meus dois filhos também não vão ter o contacto directo, e acho essencial que lhes seja passado através do conhecimento. É essencial desenvolver o espírito critico dentro do conhecimento”, afirmou.
“Como mãe e como professora, acho que é essencial esta aposta na educação, mas penso que será importante termos alguns aspectos que poderiam ser reforçados. Ou seja, para além de uma educação do conhecimento de efectivamente daquilo que se passou, podermos transmitir no lado emocional uma compreensão na pele, qual a importância destes valores. Acho que é essencial o papel das artes neste sentido para que a compreensão destes valores não seja apenas uma relação racional e lógica, mas que seja efectivamente uma compreensão da necessidade como um bem para todos e para as gerações mais novas”, resumiu.
Uma opinião partilhada por Pedro Santos, outro dos convidados deste painel. Para o estudante de medicina é essencial que a mensagem do 25 de Abril se perpetue.
“Há sempre quem tente negar que o 25 não mudou a nossa vida para melhor. Mas a minha geração nunca será capaz de equacionar o factor das perseguições, da guerra, do medo… Por outro lado, faço parte de uma geração que olha para a política partidária e para poder em geral com alguma desconfiança e desinteresse”, começou por dizer, concluindo: “É um paradoxo porque gostamos de ter a liberdade, mas parece que nem sempre a estamos a utilizar devidamente”.
Chamando a atenção para “o cepticismo dos jovens relativamente à vida partidária actual”, Pedro Santos considera que a sua geração “não tem a noção que tem uma voz”.
“Preferimos usar essa liberdade para enveredar por outros meios, como voluntariado ou associações do que nos envolvermos na vida política. Talvez porque não reconhecemos maturidade à classe política para nos governar”, analisou.
“A nossa geração acaba por viver o Abril pela metade: gostamos da liberdade, mas ainda não conseguimos perceber bem o que podemos fazer com ela. Vamos ouvindo que estamos muito ligados à tecnologia, redes sociais, mas o que temos vindo a ver é que nunca houve uma geração que lutasse desde tão cedo contra as desigualdades, contra o direito de cada um amar quem quer, lutamos pelo direito de lutar por um planeta que está a morrer. Não andamos atrás dos partidos porque os partidos é que têm que andar atrás de nós, de nos ouvir”, afirmou ainda.
“Não vale a pena combater o extremismo a dizer que é mau, é preciso educar as populações, os jovens. Garantir que quem começa agora a ter voz não cometa os mesmos erros da geração passada”, apelou.
“Acho que para garantirmos esta liberdade, o objectivo é sermos mais ambiciosos do que fomos até agora. O objectivo já não é criar uma democracia, já não é implementar a liberdade de expressão, isso já foi feito. O objectivo é garantir que essa liberdade chegue a todos e que é respeitada por todos. O objectivo é, também, reconhecer que isso está longe de acontecer e que há um grande caminho a percorrer. Temos de apostar mais na educação e na sensibilização. Não é preciso apenas dizer que está na constituição, que existe liberdade. Não, o objectivo é garantir que todas as pessoas, de forma intrínseca, se consigam respeitar e se consigam perceber que ela existe e o que ela significa. O objectivo é reconhecer o que até agora não foi bem feito e só por estarmos a dar os passos no caminho certo, não quer dizer que não possamos ir ainda mais longe. É o que tem faltado nos últimos anos, não sermos tão ambiciosos como devíamos ser”, concluiu.
Filipe Mendes