Cumpre-se este domingo, dia 22 de Agosto, o 99.º aniversário do nascimento do nosso saudoso Amigo João Gomes Moreira, um Homem de excelsas qualidades humanas que Deus chamou para Si no dia 7 de Dezembro de 2017, deixando-nos a todos mais empobrecidos pela perda de um Amigo a quem reconhecemos atributos de eleição, pelo que ousamos dizer, parafraseando o Príncipe dos nossos Poetas, que por obras valerosas, se vem libertando da lei da Morte.
Só morrem aqueles que são esquecidos e, naturalmente, o nosso Amigo João Moreira, homem dos sete ofícios, sempre disponível para colaborar no que fosse necessário, com um espírito de intervenção notável, que ia muito para além da simples ajuda ou apoio, pois, felizmente para os que tivemos o privilégio de conviver consigo, o seu espírito crítico estava sempre desperto, no que muito nos valorizava.
O conceito de amizade que João Moreira cultivava assentava numa louvável base de sinceridade e de respeito. Esta frontalidade trouxe-lhe, como se compreenderá, alguns dissabores, porém, que não restem dúvidas, que apenas se podiam zangar aqueles que não eram verdadeiramente amigos.
Para João Moreira os melhores amigos eram aqueles com quem se podia contar na hora do infortúnio ou da tristeza, pois amigos em tempo de festa e de alegria nunca faltavam, mesmo quando o sentimento não era tão genuíno quanto se apreciava. Por questão de princípio, João Moreira era amigo de toda a gente, mesmo daqueles com quem privava apenas há alguns dias ou até horas, pois a sua capacidade de empatizar com quem quer que fosse era infinita.
Nas andanças do folclore, no país ou no estrangeiro, João Moreira concitava o companheirismo e a estima de milhares de membros de grupos folclóricos ou de organizadores de festivais, pelo que durante o Verão as suas férias profissionais eram ocupadas em “tournées” pelo mundo folclórico. Na maioria dos casos assentava arraiais em Confolens, em França – um dos mais importantes festivais internacionais de folclore a nível mundial, onde esteve em mais de vinte edições – a partir de onde seguia para outros festivais, ao acaso das boleias de alguns grupos que por ali estavam.
João Moreira não cuidava de definir previamente o seu itinerário nem o respectivo programa, pois tudo acontecia ao sabor das circunstâncias. Como tinha a maior das facilidades em comunicar com toda a gente, valendo-se, até, do conhecimento mínimo de algumas palavras em diversos idiomas, que muito facilitavam a abordagem inicial, e da sua vasta cultura geral, tinha o dom de abrir portas e de criar amizades que, em muitos casos, duraram até ao final da sua vida.
O facto de participar nas Assembleias Gerais do Conseil International des Organizateurs de Festivals de Folklore (CIOFF), que decorriam em cada ano num país diferente, também lhe facilitou o conhecimento de todos os principais organizadores de festivais a nível mundial, os quais, cativados pela sua simpatia e pelo seu espírito generoso, o convidavam para visitar o seu país por ocasião dos principais festivais, ao que o nosso Amigo João Moreira fazia gosto em corresponder, sempre que a magra bolsa permitisse assumir os encargos das viagens de ida e volta. No mais, não havia preocupação, posto que as principais despesas efectuadas no país estrangeiro corriam por conta da organização do festival e de quem lhe dirigia o convite.
Tive o privilégio de confirmar em diversos festivais o encanto com que os directores dos festivais recebiam o amigo João Moreira, pois, em boa verdade, nunca desperdiçavam os ensinamentos que podiam usufruir da sua companhia, pois sem qualquer dúvida a sensibilidade humana do João Moreira permitia superar algumas situações inesperadas e até, por vezes, complexas.
Num Festival Internacional de Folclore onde participam diversos grupos de quase todos os continentes, com a especificidade da sua cultura e dos seus valores morais, políticos e religiosos, são frequentes alguns momentos de tensão, que só poderão ser solucionados com uma certa tolerância e compreensão, e neste aspecto, como em tantos outros, de resto, João Moreira era mestre. Com um sorriso, com um brinde e com uma gargalhada espontânea tudo se superava e todos ficavam mais amigos.
O espírito com que foi constituído o CIOFF, em 1970, era, exactamente, o de fomentar a aproximação e a convivência entre todos os membros dos grupos folclóricos, independentemente das diferenças ideológicas, políticas, culturais ou religiosas e neste aspecto, com a personalidade tolerante e apaziguadora do João Moreira, não poderia encontrar-se melhor diplomata.
O facto de convivermos tão próximo com uma pessoa, seja ela quem for, nem sempre nos ajuda a conceder-lhe o justo valor moral, social e cultural, que tendemos a ver sempre como alguém que nós admiramos, mas que não passa disso. Pois, o nosso Amigo João Moreira foi a segunda pessoa do mundo a ser designado, por unanimidade, membro Honorário do CIOFF, sendo que a primeira pessoa a merecer esta distinção mundial foi Henry Coursaget, o fundador do Festival Mondial de Confolens e o fundador do CIOFF!
Parece coisa pouca, no entanto note-se que o CIOFF está representado em 108 países de todos os continentes, representa 334 festivais a quem foi reconhecida a qualidade para ser membro desta organização – em Portugal apenas treze festivais integram o CIOFF mundial – e é uma Organização Não Governamental (ONG) com o estatuto de Consultora da Unesco, nomeadamente ao nível da avaliação das candidaturas à qualificação do Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Esta realidade poderá ajudar-nos a compreender a complexidade de uma instituição desta natureza e o alcance social e cultural dos seus objectivos a favor da construção de um mundo onde a Paz e a harmonia entre todos os povos seja uma realidade. No entanto, ninguém ignora que este não é um caminho fácil nem isento de escolhos, pois integram a mesma Instituição países que nos seus territórios vivem ambientes de profunda hostilidade e tensão política. No Festival Celestino Graça – A Festa das Artes e das Tradições Populares do Mundo já coincidiram na mesma edição grupos de Israel e da Palestina, grupos da Sérvia e da Croácia, grupos da Rússia e da Ucrânia, ou grupos da Polónia e da Indonésia, e, no entanto, a convivência entre todos foi exemplar, porque aqui, como na maioria dos festivais CIOFF, o lema assenta no respeito e na tolerância, permitindo que cada um professe os seus ideais, mas respeite e não conflitue com os ideais dos outros.
Este espírito de tolerância e de respeito encontra-se nos aspectos mais simples da própria organização do Festival, como é o caso das dietas culturais ou religiosas, da não ingestão de bebidas alcoólicas, ou da participação em actos religiosos ecuménicos.
O nosso Amigo João Moreira, cuja memória evocamos com muita saudade, é o exemplo mais perfeito deste espírito tolerante e fraterno, pelo que o tempo que passa sobre o seu infausto falecimento não diminui em nada a nossa admiração nem a nossa Amizade.
Etnografia & Folclore – Ludgero Mendes