Entrevista ao Capitão de Abril Carlos de Matos Gomes

O verdadeiro significado do 25 de Abril é muito simples: restituiu a cada um de nós a liberdade, incluindo a liberdade de escolher o que fazer dela. É essa a perspectiva de Carlos Matos Gomes, homem que esteve na génese do ‘Movimento dos Capitães’, assumindo “a responsabilidade histórica de agir”. Carlos de Matos Gomes (nascido em 1946 em Vila Nova da Barquinha) foi oficial de comandos na guerra colonial, ferido em combate e altamente condecorado. Aprendeu na guerra o sem sentido da guerra, ao menos daquela, e participou na primeira Comissão Coordenadora do MFA.

Durante a revolução dos cravos assumiu posições e subscreveu documentos mais à esquerda. Foi também acusado de envolvimento na destituição de Jaime Neves da chefia do Regimento de Comandos da Amadora, embora outras fontes sustentem que no momento decisivo se opôs ao seu saneamento. Para Matos Gomes, o” 25 de Abril foi, em suma, uma libertação colectiva” e recusa que o seu companheiro de armas, Salgueiro Maia seja tratado como “um coitadinho! Um maltratado!”.Ele nunca se viu assim, nem admitia que o tratassem assim”, afirma nesta entrevista, a propósito do “dia inicial inteiro e limpo” e que marca a história do País como o acto fundador da nossa contemporaneidade com a Europa e o mundo democrático e anticolonial, a par dos valores de Abril, bandeira à volta da qual a liberdade e a democracia, a liberdade de expressão e de imprensa uniram os portugueses na construção de um Portugal livre, democrático e justo.

Como foi o seu envolvimento com o Movimento dos Capitães?Eu não aderi ao movimento dos capitães: eu fiz parte do pequeno núcleo que na então Metrópole e no então Ultramar procurou organizar os seus camaradas para uma tomada de posição consequente com o que, ao fim de onze anos de guerra, nós vivíamos e sofríamos. Vivíamos uma situação de beco sem saída do regime para a questão colonial e para a guerra eterna e sem solução, víamos a juventude portuguesa ser cada vez mais crítica quanto ao “fazer a guerra”, víamos as forças armadas portuguesas a que pertencíamos como quadros permanentes a serem colocadas em situações de guerra cada dia mais difíceis e desprestigiantes. Pertenci assim ao pequeno grupo que, como acontece recorrentemente na História, assume a responsabilidade histórica de agir.


Custa-lhe ver que o 25 de Abril se tornou, para muita gente, num dia  
de cerimónias sem significado?
Não me custa nada do que o 25 de Abril se tornou para quem quer que seja. As cerimónias são importantes e o significado delas é dado por quem as sente. As cerimónias são marcos na memória e valem por elas próprias e pelos valores que representam.


Algumas pessoas, confrontadas com a situação actual, dizem que faz  
falta outro 25 de Abril. O que pensa disso?
O 25 foi feito para todos os dias ser possível um 25 de Abril. A grande questão que a pergunta coloca é a de essas pessoas pensarem as mudanças sociais como uma responsabilidade de “outros”. O 25 de Abril foi, em suma, uma libertação colectiva. A sociedade tem de aprender a assumir a responsabilidade por si, por aqueles que escolhe e elege, pelas opções que toma… Não há salvadores! Não vem aí nenhum outro 25 de Abril, como não virá nenhum Dom Sebastião.


A utopia de uma sociedade justa e perfeita esfumou-se?A utopia esfuma-se antes de produzir fumo. Não há sociedades justas. Há sociedades com melhores ou piores equilíbrios de forças. A utopia é como as fotografias das agências de viagens para destinos de sonho. A realidade nunca corresponde às imagens paradisíacas dos postais.

Não alinha no discurso do 25 de Abril traído?Não, de todo. Tanto quanto consigo entender, em 25 de Abril de 1974, os problemas de Portugal eram uma guerra colonial em 3 frentes, uma sociedade militarizada – 250 mil homens em armas, uma percentagem de militarização apenas superada pelo estado de Israel, 60% do Orçamento do Estado afecto a despesas com a Defesa, 8 mil mortos, 30 mil feridos de guerra, isolamento internacional, emigração em larga escala, censura nos meios de comunicação, tribunais plenários, polícia política, presos políticos, um regime de ditadura, ausência de liberdade organizativa dos assalariados, ausência de eleições livres… era esta a realidade que o 25 de Abril alterou, promovendo um Estado democrático de direito, um Estado anticolonialista, um Estado integrado na comunidade internacional. Como posso aceitar que o 25 de Abril foi traído se hoje os grandes problemas nacionais que vejo discutidos são a contagem do tempo de serviço de funcionários públicos, professores, magistrados, militares, amanuenses, e a nomeação de primos em 3º ou 4º grau, de vizinhos e afilhados da comunhão solene, de compadres da bisca para gabinetes e repartições?

Nos aniversários do 25 de Abril fala-se muito de Salgueiro Maia. Acha  
que ele foi um injustiçado ao longo da sua vida?
A pior aproximação ao Fernando Salgueiro Maia é apresentá-lo como um coitadinho! Um maltratado! Ele nunca se viu assim, nem admitia que o tratassem assim. Ele teve um papel decisivo e do maior brilhantismo militar enquanto comandante das forças que obtiveram a derrota do governo, as forças que materializaram a vitória do movimento das forças armadas, e essas acções não são para ser “recompensadas”, nem para serem agradecidas, são para servir de exemplo e motivo de orgulho de um povo que “tais filhos teve!” e terá, assim espera que o seu exemplo frutifique! Salgueiro Maia foi e é o símbolo de uma geração de militares que serviu brilhantemente a sua pátria.

A Revolução faz 45 anos. Valeu a pena?São os portugueses que têm de responder todos os dias se querem ser subjugados, servos, ou senhores dos seus destinos.


Se soubesse o que sabe hoje, o que teria feito de diferente?Rosa de Luxemburgo escreveu que as revoluções não têm ensaio geral. É o futuro desconhecido que faz valer a pena entrar com as suas convicções na História. É o desconhecido que faz a vida ser merecida de se viver.

Como vê a mudança da EPC de Santarém para Abrantes?A mudança de local de um quartel é apenas uma adequação dos meios aos objectivos. Falta saber que Forças Armadas um país como Portugal necessita de ter e para quê.


Alguns ex-combatentes dizem que não se fala da guerra colonial. Tem  
vários livros publicados e a maioria deles fala da guerra. Como recebe  
essas queixas?
Oiço e leio essas afirmações como oiço tantos outros palpites de comentadores que não sabem do que falam. A frase tipo é: «Só neste país!» Ora a guerra colonial é o tema mais tratado na literatura portuguesa. Não existe outro tema tão abordado, nomeadamente na ficção. Se tivermos algum conhecimento, saberemos que durante o século XIX apenas Eça de Queiroz abordou África e para afirmar que as colónias deveriam ser vendidas em leilão. Durante a República e o Estado Novo os escritores portugueses não escrevem uma linha sobre África – de Carlos Oliveira e todos os neo-realistas, Redol, por exemplo, mas também Namora, Vergílio Ferreira, Batista Bastos, Cardoso Pires, Paço de Arcos, o Nobel Saramago, nenhum escreveu uma linha sobre África. É após o 25 de Abril que o tema surge e surgem com um vigor, pelo menos quantitativo, que não tem paralelo em qualquer época anterior sobre qualquer tema, do amor incompreendido à descoberta do mundo!

Ainda existe tabu sobre a Guerra Colonial? Os portugueses têm uma má relação com a memória?Não é possível existir um tabu sobre um acontecimento que durou treze anos e que foi partilhado por cerca de um milhão de pessoas de todas as condições! Não penso que os portugueses tenham uma relação diferente com a sua memória histórica do que outros povos da mesma civilização.

Que fazer contigo, pá?’ é o título do seu novo romance. Qual é o tema  
central e porque decidiu lançar esta obra?
«O que fazer de ti, pá?» é um romance sobre o destino dos homens a quem a História colocou a desempenhar um papel que os excede, homens a quem é imposto um «destino» e que são levados aos limites do poder, sendo quase deificados! O que fazer deles quando a realidade se impõe e impõe a mediania das vidinhas que são, no fundo o desejo da maioria dos seres humanos, ter um tecto, refeição na mesa, saúde… garantias, certezas, segurança, incluindo a do direito a um bom lugar no cemitério, como é referido no romance. O que fazer dos salvadores quando eles já não são necessários pois cada um está a tratar de se salvar a si mesmo? Como passamos do ideal ao real? O que fazer aos que saíram fora da realidade? Interná-los como loucos? Obrigá-los a matar?

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