O Doutor Aurélio Lopes acaba de escrever mais um livro onde aborda numa perspectiva histórica e antropológica algumas questões religiosas, o que tem constituído a sua área preferencial de investigação, respeitando agora este último livro à vida de Jesus e aos inícios do Cristianismo, tanto quanto os dados existentes e sustentáveis, tanto cristãos como não cristãos, tanto canónicos como apócrifos, deixam perceber.
Messias judaico, possivelmente asmoneu, que liderou uma fracassada insurreição contra os romanos, da qual resultou a sua prisão, condenação e morte. E cuja frustração mereceu, mais tarde, dos seus seguidores uma intensa espiritualização, transformando-o, gradualmente, num Deus Redentor, modelo teosófico na altura frequente no Mundo Mediterrâneo, mas, completamente estranho à tradição religiosa judaica.
Entendemos muito interessante conhecer em primeira mão o pensamento do Autor sobre este estudo e daí termos ido ao seu encontro do que resultou a seguinte conversa.
Pode dizer-se que este estudo, cuja publicação está para breve, surge no contexto de outras obras editadas sobre a espiritualidade popular no nosso país, nomeadamente sobre o culto mariano?
É algo diferente. Etapa de um processo continuado de investigação, é um facto. De chegada, se quisermos. Num círculo de eterno retorno em que o fim é, sempre, condição de começo. Respeita este, contudo, a tempos mais remotos e a espaços mediterrâneos orientais. Espaços onde se processou a historiologia mítica de Jesus e a forma como a mesma evoluiu até fins do século IV. Tempos em que este se consagrará finalmente como Deus-Filho e tal irá desencadear um conjunto de acções, como a selecção das escrituras que irão formar a Bíblia, o reconhecimento do cristianismo como “religião oficial” e, diversos aspectos de promoção cultual como as “descobertas” da “vera cruz”, da “gruta de Belém”, de “Nazaré” e, principalmente, a assunção e comemoração do Natal.
Ludgero Mendes
Muito se tem publicado sobre os primórdios do cristianismo e, até, sobre a vida de Cristo. Será que para lá das componentes ficcionais as investigações independentes têm sido escassas?
Existem diversas investigações no estrangeiro, que não entre nós em que este estudo surge como pioneiro. Contudo, muitos possuem condições que, conceptual e analiticamente, os restringem. Ou são manifestamente confessionais ou anti-confessionais. Ou estritamente históricos ou linguísticos. E sabe-se como, em qualquer destas duas áreas, os dados são fruto de contingências várias que afectam, fortemente, o rigor e a fiabilidade. E muitos autores são crentes e teólogos (mesmo que não assumidos) de interesses pouco alheios a eventuais conclusões. De autonomia analítica pouco evidente. Compreende-se, assim, que uma abordagem metodológica de matriz igualmente sócio-cultural, incidindo em textos muitas vezes controversos e contraditórios, escritos por autores desconhecidos em locais e tempos desconhecidos, naturalmente salientem diversas incongruências.
Esta abordagem surge, então, com o propósito de desmistificar muitas dessas incongruências?
Não posso dizer que surja com esse objectivo, embora tal possa acontecer. Pretende, sim, constituir, de alguma forma, uma alternativa na historiografia em grande parte mítica de Jesus. Susceptível de fornecer aos interessados uma outra visão do tema em apreço. Que possibilite, a cada um, diferenciadas e sustentáveis condições de análise. Não pretende exprimir uma verdade completa e absoluta, pouco provável de se percepcionar em complexos documentais tão heterogéneos, modificados, muitas vezes pouco fiáveis e insustentáveis. Mas, apenas, a verdade possível face aos dados existentes e na óptica do investigador.
Este estudo parece ter aberto, não diremos uma caixa de pandora, mas muitas portas inesperadas quanto ao conhecimento convencionado pela Igreja. Eclodem muitas dúvidas e surpresas sobre alguns aspectos da vida de Cristo, bem como da utilização e evolução da sua memória.
Existem diversos aspectos que numa abordagem histórica e antropológica (em contexto alargado igualmente sociológica, económica, política e linguística) surgem como insólitos, erróneos ou meramente improváveis. Desde logo, a não existência de uma qualquer “matança dos inocentes”, a incongruente situação matrimonial de Jesus e os seus inúmeros “irmãos”. A inexistência de qualquer tradição de “libertar um criminoso na Páscoa” ou qualquer obrigação de levar as populações a recensear-se em eventuais centros administrativos da tribo ou nação. A introdução do prodigioso associado ao Natal apenas em fins do século III / inícios do século IV, a data de nascimento de Jesus bem anterior ao ano 1, a insólita “última ceia”, as relações tensas de Jesus com a família e o conflito entre Pedro e Paulo nos primeiros tempos do cristianismo. Ou ainda, a provável inexistência de “Nazaré” no tempo de Jesus ou o equívoco terminológico que levou ao dogma da “Virgindade de Maria”. Enfim….
São situações que resultam de uma Igreja exterior à ciência e às suas conclusões?
Naturalmente tais aspectos resultam de análises científicas, com certeza, não correspondendo às perspectivas dos crentes, assentes na fé. Ciência que a Igreja considera dispensável no seu entendimento teológico da realidade. Como disse Pio XII há algumas décadas, “para os cristãos, a questão da existência de Jesus não radica na ciência, mas na fé”. Contudo, a Igreja tem consciência do mundo em que vive e, se achar conveniente, não hesita em recorrer à eventual validação científica. Foi o que aconteceu com o chamado “santo sudário” submetido, há alguns anos, à análise do carbono14. Os resultados, não convenientes, caíram, naturalmente, no esquecimento.
Tal como referiu, os aspectos relacionados com o nascimento de Jesus surgem muito tardiamente. Porquê?
Durante os primeiros séculos o nascimento de Jesus não era considerado importante. O seu verdadeiro nascimento era a epifania; tal como dizia Clemente de Alexandria, ainda em inícios do século III. Será no tempo de Constantino, no século seguinte, que tal se irá inverter. Jesus irá ser consagrado como Deus em Niceia e tal condição há-de, entre outras coisas, e por força da vontade do Imperador, reforçar a necessidade de valorizar o seu culto, à semelhança de outras divindades com que o Cristianismo competia e que dispunham de grandes festividades natais em muitas cidades do império. Daí a necessidade de um corpo mitológico respeitante ao nascimento de Jesus que, nos inícios do século IV, virá a ser introduzido em dois evangelhos; o de Lucas e o de Mateus. Daí, igualmente, a comemoração do Natal, pela primeira vez, em meados do século IV. Corpo mítico, esclareça-se, que embora procure relacionar-se com a historiologia do ano 1 e com as escrituras judaicas, não vai deixar de importar aspectos diversos da mitologia de Mithra e até de Krishna, divindade hindu vista, igualmente, como “salvadora”.
Então, de acordo com o estudo, quem foi e como terá vivido Jesus Cristo?
Num contexto especialmente sintético, Jesus foi um messias judaico (leia-se um líder insurrecional) cuja vertente religiosa é igualmente compreensível já que, para os judeus, qualquer domínio estrangeiro (como na altura acontecia) só poderia decorrer da vontade de Deus, desagradado, de algum modo, com o comportamento do povo. De facto, qualquer revolta contra a ocupação romana implicaria, sempre, de uma forma ou de outra, uma mudança no cumprimento da Lei que desagravasse a insatisfação divina e permitisse o apoio de Deus nas acções a desenvolver. Daí a sua natureza de profeta, de alguém que veio para encaminhar “as ovelhas perdidas da casa de Israel”. Daí a previamente organizada entrada em Jerusalém, pretendendo provocar uma mobilização das numerosas massas populares que afluíam à capital na Páscoa. Numa enxurrada que expulsasse, de vez, os ocupantes romanos. Apesar de tudo a insurreição acabou por falhar. No entanto, a frustração daí resultante acabou por levar a uma espiritualização da sua imagem que, vista como ressuscitada, por efeito de Paulo de Tarso se há-de tornar gradualmente uma entidade redentora (na altura em moda no Mediterrâneo, mas sem qualquer tradição na religião judaica) que teria, assim, vindo à Terra para “remir os pecados dos Homens”.
Competindo com tantos outros cultos, o que tornou afinal, o Cristianismo, a religião universal que, entretanto, veio a ser?
Dir-se-ia que, como sempre nos fenómenos sociais um conjunto de circunstâncias, especialmente sócio-culturais e políticas, contribuíram para tal. Desde logo a dimensão da sua componente religiosa e a existência, nos territórios imperiais, de populações carentes e injustiçadas económica e socialmente; A natureza de um culto não iniciático, mas abrangente na sua conversão e universal na aceitação dos outros. Fosse em termos de género, nacionalidade, condição social, etnia ou classe social; A dimensão da diáspora judaica e a importância teológica, aí, dos deuses redentores; E, principalmente, a existência de um reformador como Saulo de Tarso (afinal o grande criador do Cristianismo) que adequou o novo culto, não só às condições doutrinárias e cultuais, como políticas e sociais do Império; E, mais tarde, a acção unificadora, fomentadora e deificadora, desenvolvida, directa ou indirectamente, por Constantino, de que Niceia pode constituir paradigma.
Gostaria de deixar uma ideia final?
Diria que, mais que um fundador, Cristo (sua vida conhecida, acções percebidas e ideias subjacentes), virá a ser, essencialmente, a figura referencial do novo culto que tem o seu nome. Que, gradualmente, deixa de ser um homem tornado Deus para morrer pelos Homens, para se tornar, cada vez mais, um Deus tornado homem que morre pela Humanidade. Podendo dizer-se, inclusive, que de alguma forma foi o fracassar do respectivo desígnio messiânico judaico que veio, afinal, a constituir o trunfo maior da posterior transmutação redentora universal.