Mais crente ou menos crente, convictamente devoto, ou nem tanto, o povo sempre remeteu os seus medos e as suas dúvidas para uma dimensão espiritual acima das leis terrenas, recorrendo a uma entidade eventualmente desconhecida, mas assumida como superiora aos desígnios humanos.

Por esta via, muitas das suas actividades espirituais estão envoltas num misto de sagrado e de profano, não se sabendo bem, nem tal será importante, onde começa uma dimensão e termina a outra. Ainda que pudessem não ser convictamente religiosas, nem tivessem o hábito de frequentar a igreja – até porque em muitas aldeias do nosso país não havia uma capela ou uma igreja – as pessoas do povo eram, pelo menos, tementes a Deus.

Daí as orações que pediam a sua intercessão em horas de aflição, onde, por exemplo, se incluem as rezas a Santa Bárbara, para apaziguar as trovoadas, a reza do responso a Santo António, para encontrar algo que esteja perdido, ou as orações em caso de benzeduras e de mezinhas, como poderiam ser os casos do mal de inveja, ou cobranto, ou da espinhela caída, entre outras curas. Muitas superstições e crenças alicerçam-se também num domínio espiritual pouco acessível à razão, mas que a convicção pessoal ou colectiva ajuda a compreender e a manter no quadro das regularidades sociais das respectivas comunidades.

Que a nossa Fé nos salva é um desígnio a que muitos de nós recorre para fundamentar a convicção e a esperança em que Alguém possa interceder em nosso favor em horas de angústia e de perigo. A ciência parece vir agora constatar que em certos casos, designadamente quando nas doenças, que a nossa esperança e convicção nos processos curativos a que sejamos sujeitos poderão ter uma influência muito benéfica para a superação dos nossos males. Vale o que vale, mas que a rendição ou a desistência perante as dificuldades não será o melhor caminho, parece que não é.

Não faltavam no nosso país, em praticamente toda a sua extensão territorial, as romarias que, igualmente, se revestiam da componente lúdica ou profana e da dimensão religiosa, o tempo e o espaço onde se faziam pedidos ou se agradeciam graças recebidas, o que frequentemente se considera o pagamento das promessas.

Os tempos evoluíram, as comunidades tornaram-se cada vez mais laicas e muitos há que até se ufanam de se proclamarem ateus ou agnósticos, parecendo que ser crente e devoto a uma qualquer religião menoriza aquele que assim se assuma convictamente. Como se fosse possível o Homem viver sem a sua dimensão espiritual, que, ao cabo e ao resto, é o factor que estabelece a diferença entre os seres racionais e os outros.

Que os Estados assumam uma posição laica, por respeito às distintas confissões religiosas, numa tentativa de tratar todos por igual, ainda se compreende, porém, que uma pessoa receie identificar-se com uma opção religiosa já não é tão compreensível, na justa medida em que parece consensual a necessidade de invocação de uma qualquer entidade acima de nós nos momentos em que nos sintamos mais fragilizados ou perdidos. Há até aqueles que são ateus, graças a Deus…

Pois, a Federação do Folclore Português, tomando como referência a matriz religiosa do nosso povo no tempo em que é estabelecida a representação etnográfica e folclórica – finais do século XIX e primeiro quartel do século XX – promove anualmente uma Peregrinação Nacional a Fátima, que este ano decorreu no passado domingo, dia 24 de Março, e constituiu já a décima sétima edição.

Como se compreende, e nem poderia deixar de ser assim, a participação dos Grupos e Ranchos de Folclore nesta manifestação de carácter religioso é facultativa e não recai nenhum tipo de penalização sobre quem não participe, sendo que os folcloristas que integrem esta Peregrinação têm de respeitar as condições da sua intervenção, tanto ao nível da sua atitude face a esta manifestação católica, como, igualmente, ao nível da indumentária usada, que, preferencialmente, é a roupa domingueira ou de festa dos nossos antepassados.

Nesta Peregrinação, cuja missa foi celebrada na Basílica da Santíssima Trindade pelo Reitor do Santuário, Padre Carlos Cabecinhas, estiveram presentes cerca de três mil e quinhentos folcloristas devidamente trajados, número nunca anteriormente alcançado, o que atesta bem o acerto na decisão de manter esta actividade no plano anual da Federação do Folclore Português. Estiveram representadas todas as regiões etnográficas do território continental, a quem se juntaram, também, alguns folcloristas vindos do estrangeiro, o que comprova o sentimento e a devoção desta gente.

Ludgero Mendes

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