Nome hoje muito esquecido, não só na História da Arte portuguesa como mesmo nos anais dos ilustres escalabitanos, o pintor Luís Gonçalves de Sena (1713-1790) foi uma celebridade no seu tempo, pelo menos na dimensão das pequenas academias e clientelas ilustradas de Santarém. É-lhe unanimemente reconhecido o mérito de ser o autor de uma obra hoje muito mediatizada e conhecida dos visitantes da cidade: o tecto da capela-mor do então Colégio dos jesuítas, depois Seminário Patriarcal e, hoje, Catedral de Santarém, onde o artista mostrou dotes no campo da perspectiva ilusionística. Essa abóbada afrescada em 1754 revela, de facto, recursos invejáveis no domínio da «quadratura» italiana, introduzida em Portugal nos primeiros anos do século XVIII, que atestam o conhecimento que o Sena tinha dos modelos tratadísticos do célebre Padre Andrea Pozzo e mostram uma boa formação artística.
Também é seu o tecto da abóbada da sacristia da igreja da Misericórdia escalabitana, que data de 1747-1748 e mostra a eficiência cenográfica e a «competência de fazer» de um bom pintor português da fase barroca. O mesmo elogio se aplica às seis telas com passos da Vida de Jesus Cristo que ornam a mesma sacristia da Misericórdia, acima do arcaz, adestradas ademais na soltura dos fundos de paisagem. Na pesquisa que empreendemos, há muitos anos, sobre os pintores de Santarém a partir dos riquíssimos fundos arquivísticos da cidade, muitos dados surgiram sobre o pintor e é possível traçar-se, hoje, uma biografia actualizada do seu percurso. O Sena, que na juventude não teve meios nem mecenas para empreender a desejada viagem a Roma, aprendeu primeiro em Santarém junto de um bom pintor chamado Inácio Xavier, que fora bolseiro de D. João V na Cidade dos Papas, e depois em Lisboa, no círculo dos discípulos do florentino Vincenzo Baccherelli, o que explica o domínio da ciência perspéctica.
A sua biografia está de há muito traçada, fruto de um conterrâneo chamado Joaquim Duarte Benedicto (nome que encobre o de um religioso seu admirador e amigo, acaso dominicano) que em 1791, um ano volvido sobre a morte do pintor, deu à estampa um opúsculo intitulado ‘Elogio do Grande Appeles Português Luiz Gonçalves de Senna’, que lhe traça os passos de vida e actividade artística, acompanhados de laudatória extrapolação dos seus méritos, chegando a escrever o seguinte: «o grande Pintor, de que fallo, não sendo mais que hum só, era hum perfeito Florista, hum peregrino Paizagista, hum magnifico Figurista, hum excelente Retratista, e sábio Perspectivo, razões porque o contemplo hum dos maiores Pintores, não só de Portugal, mas também de toda a Europa, se o não foi de todo o Mundo»…». Mais moderados no elogio, outros autores bem mais relevantes que Benedito, como José da Cunha Taborda e Cyrillo Volkmar Machado, também referem Sena, no início do século XIX, elogiando os dotes do pintor de Santarém. O sucesso de Sena deveu-se ao acolhimento que teve por parte do mercado local, desde os conventos (sobretudo o de São Domingos) às confrarias e irmandades, sempre limitadas de recursos e de gosto numa época em que a vila ribatejana não vivia já o esplendor de outrora. Das muitas telas que pintou em paróquias desaparecidas, como em São Martinho, ou conventos, como São Francisco e São Domingos, sabe-se pelo biógrafo que estes quadros, hoje inlocalizáveis, granjearam admiração local.
O pintor, que tinha o epíteto de Apeles Santareno, e cuja biblioteca (diz Benedito) era rica de tratados de arte e de álbuns e gravura, nos quais despendeu muito dinheiro, chegou a ser chamado a Lisboa para pintar obras como o desaparecido tecto do Colégio dos Nobres e o de São Francisco de Xabregas, pintando também no mosteiro de Jesus algumas obras. Era homem extremamente devoto, que viveu sempre em Santarém com sua mulher Fabiana Maria da Rosa (com quem casou em 1735, não tendo tido descendência), sendo considerado no seu meio o mais destacado artista no campo da pintura de óleo, de fresco, de têmpera, de dourado e de estofado, tanto em quadros sacros como no retrato, na natureza-morta e, ainda, no restauro de pinturas antigas. A sua fama levou, como de disse, às exageradas extrapolações de Benedito, que chega a compará-lo a Rafael de Urbino (!), escreve coisas como esta: «acabando de fallar da Pintura, em que tão grande te fizeste, que direi de tuas virtudes, em que tão distinto se mostraste. Ah, de que modestia, de que candura, de que probidade, se revestia este justo homem !».
Em recentes obras ocorridas na igreja de Santa Marta de Alcanhões, o seu pároco, o historiador de arte Doutor Tiago Moita, encontrou ao abandono, numa dependência do templo, uma grande e estragada tela que pertencera à boca da tribuna do retábulo-mor (de Estilo Nacional tardio). Ao proceder-se à limpeza e tratamento laboratorial da peça, ela veio revelar estilemas característicos da «mão» de Luís Gonçalves de Sena. Trata-se de uma representação de Santa Marta em corpo inteiro, de pé, com bela cabeça de toucado aristocrático, com generosa indumentária debruada de lavores barrocos, sendo a figura envolvida por uma paisagem desafogada que lembra a de outras pinturas do Sena na Misericórdia de Santarém. Apesar da evidente convenção iconográfica e da rigidez da pose, adequada ao papel que cabe a um orago no contexto de um altar principal, a composição revela competência, colorido aberto e acerto de desenho e constitui, por isso, uma valiosa descoberta. Desse modo, o padre Tiago Moita, pároco das freguesias de Alcanhões e Vale Figueira (Santarém), acaba de aduzir à sua já generosa lista de obras de arte salvas (entre elas dois excelentes telas seiscentistas de André Reinoso, em Vale Figueira) esta grande e desconhecida tela da fase barroca, que constitui razão acrescida de encómio.
A pintura, que é já registada no altar-mor da igreja, em 1758, pelo padre Amaro Ferreira, na notícia que enviou para as Memórias Paroquiais, foi pintada poucos anos antes dessa data (cª 1750) e inclui-se dentro das encomendas normativas produzidas em Santarém para as clientelas religiosas da província, sempre convencionalizadas e de médios ou baixos recursos. Neste caso, a confirmar-se a autoria do Sena, com a análise formal e técnica que o processo de restauro vai facilitar fazer-se, a tela de Santa Marta de Alcanhões passa a constituir mais um interessante testemunho dessa pintura barroca de sentido devocional em que o Apeles Santareno se notabilizou. Não se sabe ainda com absoluta certeza se a tela de Alcanhões será mesmo do Sena, ainda que os estilemas assim o apontem; seja como for, trata-se de mais uma boa peça de património sacro que é resgatado da desmemória, facto suficiente para justificar esta breve nota preliminar de descoberta, com o devido aplauso ao padre Tiago Moita pela sua dedicação ao duplo ‘munus’ que abraçou, a vocação sacerdotal e a prática histórico-artística.
Nota: para o conhecimento do artista, cf. Vitor Serrão, Estudos de Pintura Maneirista e Barroca (Caminho, 1989, pp. 263-270), com documentação nova, e Magno Moraes Mello, Os Tectos Pintados em Santarém Durante a Fase Barroca (CMS, 2001).
Vitor Serrão – Prof. catedrático da Universidade de Lisboa