Há dez anos sofremos a crise do subprime, ou do Lehman Brothers. Uma crise longa, com resultados devastadores nas economias e na vida dos cidadãos europeus. Essa crise constituiu um fator influenciador do Brexit e da ascensão de vários políticos populistas ao governo dos seus países, na Europa e pelo mundo.

A crise do euro, dos resgates, das troikas foi aparentemente resolvida, os mais ricos ficaram mais ricos e os mais pobres mais pobres. Negócio habitual. Os nacionalistas ganharam em toda a linha, ao serviço dos ricos impuseram medidas draconianas de rigidez orçamental, destruíram empregos, causaram uma crise social, transferiram riqueza do Sul para o Norte, acentuaram as desconfianças entre os povos, puseram em causa a utilidade e até a viabilidade do projeto europeu e, com o argumento da inutilidade da União (que eles promovem, inviabilizando um orçamento comunitário adequado às necessidades, por exemplo), fizeram eleger uma piara de dirigentes populistas à custa das críticas a estas políticas, que, no fundo são as suas, as do salve-se cada um como puder (desenvolvendo políticas fiscais de puro gangsterismo para atraírem os lucros gerados nos países do Sul, caso de Portugal), sem olhar para o lado. O objetivo final era e é matar a União Europeia como espaço decisivo no xadrez político, militar e económico mundial. A desunião europeia faz a força deles!

A forma como na Europa foi enfrentada a crise iniciada há mais ou menos uma década promoveu a emergência de um discurso político e de atores populistas que, no fundo, justificaram os sofrimentos com as leis naturais, salvaram-se os mais fortes, os mais espertos, pagaram os mais fracos e desprotegidos, evitou-se o crescimento da União Europeia e a sua entrada na arena das lutas decisivas pelo poder no mundo. Esses demagogos que tiveram Durão Barroso como “voz do dono” (dos donos, de Bush e Blair) na presidência da Comissão Europeia, minaram a UE por dentro e já cumpriram a sua tarefa, estão agora na “banca privada”, são consultores eméritos, dedicam-se ao lobismo e à manipulação das opiniões públicas mascarados de comentadores. É fatal que esta crise ainda em desenvolvimento promova novos atores, uma nova tropa de arruaceiros políticos com um discurso adaptado às circunstâncias e com os velhos truques embrulhados noutras roupagens.

A Europa, nunca tendo sido uma entidade política, exceto, talvez, durante as Cruzadas, dispõe de uma civilização com mais dois mil de anos de fermentação, nascida na Grécia, uma religião milenar com o seu sistema de valores, produziu ao longo de séculos sistemas racionais de interpretação do mundo, separou a Igreja do Estado e resistiu com algum sucesso à epidemia dos evangelistas, ao discurso milenarista, às mixórdias bíblicas, às promessa de uma salvação baseada na fé e no saque aos recursos naturais. A Europa é, numa imagem popular, um lar de velhas meretrizes que podem ser seduzidas, mas são relapsas às paixões. Para as rugosas madames se deixarem levar é necessário um sedutor competente, e os que apareceram a candidatar-se a galo da capoeira foram até agora figuras menores e sem credibilidade. A exceção foi Boris Johnson, o populista triunfante revelado no processo Brexit da Inglaterra.

Parece ser Boris Johnson o tocheiro que apresenta as melhores condições para tomar o facho do populismo europeu no pós segunda crise. A situação na Europa está hoje politicamente mais apodrecida do que há dez anos, e os europeus mais disponíveis para acolher alguém que convença as velhas damas de prazeres a desmontarem o bordel e a voltarem a trabalhar por conta própria. Julgo que o novo Messias do populismo da segunda vaga será Boris Johnson. A imagem de desmazelado, de anti sex simbol, é estudada para transmitir confiança, pois não é agressivo, nem assusta. Há quem o apelide de palhaço. Seja. Mas o palhaço é a alma do circo! A mim, Boris Johnson lembra-me uma personagem de Shakespeare, Coriolano, por sua vez inspirado na obra de Plutarco «Vidas dos Nobres Gregos e Romanos».
A tragédia Coriolano deve ter sido a última escrita por Shakespeare e projeta a visão de um observador genial da humanidade no ocaso da vida. Coriolano reflete uma opinião desiludida, irónica, depressiva da humanidade, num anticlímax, como o que hoje vivemos. Shakespeare, em Coriolano, apresentou os poderosos do mundo fascinados por eles próprios, narcísicos, orgulhosos, atentos às circunstâncias e, principalmente às suas conveniências, mas também cegos e sem consciência dos seus limites.
Não sou, muito longe disso, especialista em Shakespeare (aliás, não sou especialista em coisa alguma), mas por razões que não vêm ao caso emprateleiram-se cá por casa muitas obras de Shakespeare em várias versões, entre elas encontrei uma tradução em português, da antiga Lello & Irmão, do Porto, de que me voltei a servir com o gosto da releitura em circunstâncias diferentes. Coriolano é, em meu entender, a personagem de Shakespeare mais diretamente envolvida na luta pelo poder, apesar de ser apresentado por alguns conceituados shakespirianos como um antipopulista trágico. Agora, ao reler a tragédia com os olhos de hoje, deste tempo, vi nele a matriz do que imagino será a nova vaga de políticos populistas que irão surgir na babugem da crise e de que Boris Johnson me parece ter as condições para servir de referência, ou modelo. É a minha leitura. Rever a personagem de Coriolano pode ajudar a conhecer o mais brilhante dos seus sucessores, Boris Johnson, aquele que, julgo, será o líder populista do futuro na Europa. Boris Johnson é um revelador dos vírus das pandemias futuras, daí a sua importância.

Tal como Coriolano foi no seu tempo de cônsul romano, Boris Johnson é um aristocrata por pertença social e por cultura. Tal como Coriolano, entende e assume que para patrícios como ele as virtudes e os defeitos são naturais e equivalem-se, são inseparáveis e da mesma grandeza. Para ele, os valores servem de pouco (são até contraproducentes) na arena amoral e impiedosa da política. As ações arbitrárias são bem-vindas sempre que reforcem o poder. O crime é um instrumento, nada mais. Desprezam a virtude, a moral, a ética. A natureza de personalidades como Coriolano ou Boris Johnson não se altera perante qualquer catástrofe, e apenas temem aquilo que Aristóteles designou como erro trágico, ou hamártia, o mal (o que neles equivale a uma ação com maus resultados) cometido pelo protagonista de uma tragédia, que origina a peripécia que o derruba.

Na aprovação do Brexit pelo parlamento, Boris Johnson agiu como Coriolano contra os tribunos, os MP, incluindo o simpático que gritava Order!, pateticamente, e que tentavam bloquear as tentativas que levou a cabo para impor a sua vontade. Boris Johnson, tal como Coriolano, pretende governar saltando por cima dos deputados e do parlamento e fá-lo-á, está a fazê-lo. Este by pass às assembleias de eleitos é o sonho de todos os líderes populistas. Venceu essa guerra sem combate, a prova do génio do general, segundo Sun Tzu. O Parlamento Inglês é hoje um balcão da geral dos teatros onde uma claque bate palmas ao cônsul Boris Johnson, agora com poder absoluto (apesar de infetado) depois de banir os adversários. Boris Johnson, do mesmo modo que Shakespeare representou Coriolano, toma a multidão e seus tribunos eleitos como os inimigos da prerrogativa hierárquica.

Os líderes populistas europeus pós crise vão copiar os métodos de Boris Johnson e seguir os seus princípios. O seu programa assenta no confisco do poder pela demagogia, mesmo à custa de provocar a anarquia. Ele age na convicção de que os homens comuns são guiados por uma luz que os cega. Boris Johnson sabe que a multidão é facilmente manipulável e que, não tendo nenhuma filosofia política consistente, seguirá qualquer pregador que saiba aliciá-la com promessas agradáveis. A partir da tomada do poder fornecerá um programa de venda contínua de emoções. Será um take away de promessas. Para ele, a multidão, a populaça, é uma “hidra com muitas cabeças,” sem direção e irresponsável. Em privado, falando aos da sua classe, Coriolano descreve a multidão como uma turba mal cheirosa, “de hálito fedorento”, “pescoços enfumaçados”, “fétidos bonés engordurados” e “dentes sujos”. Os cidadãos romanos “são um rebanho”, “comedores de alho”, “patifes como as raposas e os gansos, insolentes e sediciosos”.

Esse retrato deliberadamente repulsivo de Coriolano sobre os romanos não é muito distinto do que Boris Johnson terá dos londrinos e dos ingleses em geral. Excrementos. É o mesmo que o ministro das finanças holandês tem dos latinos e que os populistas latinos, Le Pen, Salvini, o espanhol do Vox e o português do Chega têm, por sua vez, dos ciganos, dos africanos e dos imigrantes em geral.

Os novos tribunos que surgirão no rescaldo desta crise do Covid-19 estarão dispostos a desencadearem a violência da multidão para alcançarem os seus objetivos, encorajarão a “populaça” a agitar-se à sua ordem. A sua estratégia, como a de Coriolano, será a de fomentar o clamor, sobrepondo a histeria à razão, como escreveu Shakespeare e assim ocuparem “um só trono, sem assistência”, isto é, sem controlo democrático, que suprima as liberdades.

A insolência aristocrática de Boris Johnson é a reprodução do desprezo de Coriolano pelo povo de Roma, a quem tratava como “trapaceiros discordantes” e como “cães rafeiros abaixo da abominação”. Boris Johnson demonstrou durante o processo do Brexit ser relutante no cumprimento da Constituição (a Magna Carta de normas arrevesadas para um não indígena) e em submeter-se aos cidadãos, mas soube interpretar com falsa humildade o papel de leal servidor da Coroa que eles lhe pediram em troca doa seus votos, indo de cerviz baixa à audiência com a rainha.

“É um papel, que eu até coro ao representá-lo,” confessa Coriolano aos seus amigos na peça de Shakespeare. É desagradável aceitar bajular o povo para ter o seu amor, mas esse é o preço a pagar para não ter contra ele a sua má vontade, ou, pior, o seu desprezo. Coriolano professa em público o amor ao seu país, mas tornar-se-á um traidor contra uma Roma que dá voz política aos plebeus que tanto abomina. É assim também o seu patriotismo — o amor à Britânia pátria amada — de Boris Johnson e dos populistas que o imitarão, cada um mais patriota que o vizinho. Tomam o povo como o seu rebanho privado, incapaz de compreender às subtilezas do chefe — a série Yes Minister é uma boa caricatura da apreciação do povo feita pelos líderes populistas. Os populistas tentarão que a populaça acredite que o erro está no mundo em vez de neles!

A tragédia Coriolano descreve uma sociedade fascista? Há que analisar as situações no seu contexto histórico. O fascismo como o conhecemos no século vinte contém elementos de populismo, de egoísmo, de demagogia, de racismo, incluindo o de classe social e atores como os da tragédia Coriolano, mas o populismo Boris Johnson e dos que o replicarão será uma adaptação dos tiranos às sociedades europeias pós industriais do século vinte e um, caraterizadas por fracos laços de coesão, constituída por indivíduos atomizados e à mercê das tecnologias da manipulação.

Que antídoto para os Coriolanos? Identificá-los e barrá-los à nascença, por muito fascinantes que pareçam as suas promessas e até as suas vitórias. Levar Boris Johnson a sério ajuda. Como ajudou Ulisses a escapar ao canto das sereias, porque conhecia o resultado de seguir os seus trinados.

Qual o fim de Coriolano?
Coriolano acaba morto por Aufídio, o general seu inimigo e aliado, depois de o ter traído assinando uma paz com Roma. A sua morte foi necessária para que a sociedade romana pudesse reconstruir um regime republicano (democrático). Coriolano foi vítima do seu êxito, sacrificado para instaurar uma nova ordem. Boris Johnson sabe, como Coriolano, que o seu caminho só pode terminar com a sua morte política. Se negociar com Bruxelas um acordo, mesmo que seja um acordo favorável a Inglaterra, estará morto por não ter conseguido a vitória absoluta dos populistas de destruir a União Europeia. Se tiver destruído a União Europeia estará morto porque nada mais lhe resta do que ser um herói inútil no meio de ruínas.

Carlos de Matos Gomes

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