A comemorar os seus 50 anos de existência, a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental (APPACDM) de Santarém, tem defendido e propagado, ao longo deste meio século, valores como a ética e integridade, a excelência, a flexibilidade, o humanismo, a igualdade de oportunidades e o profissionalismo. Ligado há cerca de três décadas à APPACDM, Luís Amaral, presidente da direcção, faz um retrato desta instituição única na região que tem feito a diferença na vida muitas pessoas.
O que é a APPACDM de Santarém? Como apresenta esta instituição?
A Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental (APPACDM) de Santarém é uma instituição que apoia, promove e projecta as pessoas com deficiência intelectual. Somos uma Associação de referência para as pessoas com deficiência ou incapacidade, no concelho de Santarém e concelhos limítrofes. A deficiência intelectual tem características específicas e cada uma delas merece uma atenção redobrada. Daí que a nossa missão seja promover e estimular o desenvolvimento das pessoas com deficiência e a sua inclusão na sociedade; disponibilizar apoio aos seus familiares e co-responsabilizar o Estado na defesa dos direitos destes Cidadãos.
A APPACDM de Santarém é uma organização que começou por ser, há 50 anos, uma delegação de uma organização Nacional que se chamava APPACDM PORTUGAL. Santarém era o oitavo centro dessa organização nacional. No final dos anos 90, autonomizou-se, tal como as outras, que já existiam. Com isto, aproximou-se mais das pessoas e, ao longo deste meio século tem defendido e propagado valores como a ética e integridade, a excelência, a flexibilidade, o humanismo, a igualdade de oportunidades e o profissionalismo.
Que valências tem a APPACDM actualmente, e que tipo de apoio presta a estas pessoas?
Nós começamos a apoiar as pessoas logo nos jardins-de-infância. Até nas creches. Depois, esse apoio estende-se até ao final de vida. Temos valências da infância, nomeadamente ao nível da intervenção precoce nas creches e jardins-de-infância. Felizmente, desde há alguns anos, se nascer um bebé com algum tipo de deficiência, é logo possível uma intervenção precoce, e nós estamos logo aí, com uma equipa técnica, em parceria com a Saúde e a Segurança Social.
Depois, temos a valência da escolaridade, com a vertente do ensino especial que ainda temos dentro da nossa instituição. Temos um estabelecimento de ensino especial para alunos com deficiências consideráveis. Nunca fechámos essa valência apesar de outras instituições congéneres o terem feito quando, em 2008, saiu uma Lei que determina que as pessoas com deficiência em idade escolar devem ir para a escola pública, deixando, contudo, sempre a possibilidade de entidades, como a nossa, se quisessem continuar a ter essa valência o puderem fazer. Assim o fizemos. Simplesmente foi altamente reduzida na participação dos alunos nessa área, e passámos a acolher pessoas com grandes deficiências, deficiências até profundas em idade escolar. Neste momento, temos 11 ou 12 alunos em que só dois não estão em cadeira de rodas. São alimentados por terceiros, não o conseguem fazer sozinhos. Essa é a valência escolar interna. Depois, temos o Centro de Recursos para a Inclusão, que é uma equipa técnica que apoia estas pessoas que estão nas escolas. É feito o apoio aos agrupamentos de Santarém: são sinalizados no início do ano lectivo um conjunto de alunos, e a nossa equipa técnica faz o apoio destes alunos nas escolas, mantendo-os e dando-lhes apoio em ambiente escolar. Depois temos, a partir dos 18 anos, em que a idade de escolaridade termina, as valências de curso de formação e emprego para uma perspectiva de empregabilidade. Possuímos a valência das actividades ocupacionais, agora chamada de Centro de Actividades para a Capacitação e Inclusão, onde as pessoas, esgotadas as capacidades de pleno direito no mercado de trabalho, têm, apesar de tudo, hipótese de estar ocupadas. Todos têm capacidades, mas o que é preciso é estimular e aproveitá-las. O mercado de trabalho por vezes não os aceita e temos que respeitar essa opção, mas nós estamos cá para estimular e valorizar o trabalho destas pessoas. Depois desta valência, o que acontece é que a evolução da idade exige que as pessoas tenham cada vez mais hipótese de terem casa, e, às vezes, já não têm família estruturada que os possa atender e dar resposta. Aí, conseguimos responder a alguma parte, pelo menos, com a nossa capacidade de estruturas residenciais permanentes, e temos uma vontade grande de aumentar essa capacidade.
Como olha para a evolução de cuidados prestados a este tipo de pessoas com necessidades especiais ao longo dos anos?
Acho que se melhorou muito porque houve também um momento em que estas entidades, que prestam apoio, tiveram que pensar que as coisas não aconteceriam, como é costumeiro dizer, ‘Por Obra e Graça do Espírito Santo’, ou que o Estado faria tudo. Hoje, temos a clara noção que o Estado é um parceiro, e as entidades têm que se abrir à comunidade. Portanto, essa parte, esse ponto de vista, essa cultura organizacional, evoluiu na medida em que houve pessoas que foram sendo capazes de criar condições para melhorar o atendimento a essas pessoas, integrá-las ao máximo e não tiveram uma atitude conformista, de esperar que as coisas acontecessem.
Por outro lado, registamos avanços significativos em termos científicos e conseguiram fazer-se coisas notáveis com resultados espectaculares na avaliação destas pessoas, na construção de ferramentas para o seu estímulo, e para a sua qualidade de vida. Agora, há ainda muito para fazer… há aqui uma componente muito importante, que são as famílias que têm muita angústia, muitos receios. Há um longo caminho a fazer neste campo, unindo instituições, em parceria com o Estado e com a sociedade civil. Temos que ter capacidade de ajudar essas pessoas a descansarem. Temos que ir encontrando esses mecanismos. As famílias deparam-se com a aflição de deixar sem retaguarda os filhos e estão claramente exaustas depois de uma vida inteira de cuidados.
As políticas do estado deviam ir mais nesse sentido de apoiar as famílias?
Já existem alguns sinais que vão nesse sentido, o de ser possível apoiar os cuidadores. Aquilo que desejamos é que as entidades que estão no terreno sejam parceiros das famílias e do Estado, por forma a que este triângulo consiga ter aqui um equilíbrio.
O cuidador não pode deixar de descansar. A pessoa com deficiência não pode deixar de ser feliz, de ser realizada. E a instituição tem que ter capacidade para isso, nesta parceria. E, aqui, o Estado é, obviamente, um parceiro muito importante: não conseguimos fazer tudo o que desejamos e que achamos que é o melhor para as pessoas, mas vamos conseguindo que o Estado esteja presente.
Mas, mais importante que o Estado ajudar mais financeiramente – muitas vezes foca-se muito só essa área – é importante que esteja connosco na avaliação das respostas. Por vezes, a centralidade do Estado, em Lisboa, não permite que seja avaliada, no local, a melhor solução, que, às vezes, não é a mais cara. No local, o apoio do Estado é muito importante e a parceria é mais produtiva.
Uma das bandeiras da instituição é precisamente a integração, o que faz falta para que essa integração seja realmente mais ampla?
A integração destas pessoas passa por olhar para elas como pessoas…. Não somos todos iguais e há que ter em conta que as pessoas, todas elas, têm gostos, defeitos, virtudes. Procuramos trabalhar no sentido da ‘não diferença’ e, naquilo em que o Estado nos pode ajudar, é em encontrar, para cada pessoa, a solução para que seja possível que ela se realize. A pessoa com deficiência intelectual pode perfeitamente ser realizada, sem que haja, da parte do Estado, ou da nossa, nenhuma atitude existencialista. É preciso fomentar e capacitar a sociedade civil para que haja a consciência que as pessoas com deficiência sabem fazer coisas. Que as aceitem para poderem fazer à proporção da sua capacidade. Muita gente pode achar que estas pessoas não sabem fazer nada e as empresas podem interrogar-se em que funções a podem integrar. Mas nem que sejam por três ou quatro horas por semana. Há que passar a ideia que são válidas e podem ter um papel activo. Mas há um trabalho por trás que tem que ser feito e o Estado tem que nos ajudar a tocar essas pessoas, organizações sociais e comunidade para que estas pessoas possam lá estar sem serem consideradas um fardo.
Há uma legislação agora a sair para pôr em prática, no próximo ano, que vai ajudar nesta questão, incrementando a resposta das actividades ocupacionais com grande pendor externo, as pessoas fazerem coisas fora da instituição. Isto tem custos e o Estado tem que ajudar as instituições a suportar esses custos, mas as pessoas vão ficar mais felizes.
Será necessário nós, enquanto sociedade, termos uma outra postura e visão em relação a estas pessoas?
É preciso mudar aquilo que ainda não mudou… já mudou alguma coisa. Eu estou ligado a isto há 20 e muitos anos. Eu reconheço que já caminhámos muito, mesmo em relação à forma como somos vistos pela sociedade. Mas, mais importante que ver a APPACDM na sociedade é ver as pessoas que, porventura, possam estar ligadas à instituição na sociedade. É muito bom a sociedade reconhecer a instituição pelo seu trabalho. E tenho que agradecer esse reconhecimento. É preciso que nós, como instituição, encontremos ferramentas para que as pessoas, afinal, não nos segreguem, nos aceitem… ainda há alguma parte da sociedade que olha com alguma distância para isto. Não podemos desistir e vamos continuar cá!
Actualmente, quais as maiores dificuldades que a instituição enfrenta?
Temos duas dificuldades diferentes. Uma, é termos que fazer muitas manutenções porque temos um edificado já com alguns anos. Este edifício onde nos encontramos carece de investimento para melhorar, não foi feito de raiz para este fim. Depois, carecemos de uma resposta social concreta que é a de criar mais capacidade de acolhimento permanente. E isso entronca naquilo que há pouco referi: é que as pessoas com deficiência intelectual, felizmente, já têm uma idade média de vida semelhante ao cidadão comum. Mas, com essa idade, já não têm quem cuide deles. Uma pessoa com 60 anos com deficiência intelectual e com pouca autonomia, os pais já não terão capacidade.
Nesse sentido, é indispensável o lar residencial. Vamos continuar a fazer tudo o que já fazemos, mas depois chega o momento da residência, do acolhimento. O dia acaba e a pessoa não tem em casa quem cuide dele. Temos uma lista de espera que é quase uma angústia, porque sentimos que temos que resolver o problema a estas famílias, senão, não tem lógica a nossa existência. Estamos com espectativa de poder ter alguma ajuda nesse sentido, aumentar capacidade nomeadamente na área do Cartaxo, onde podemos crescer, juntando ao que lá existia e ajudando, de facto, estas famílias. Em suma: estamos agora a encetar o caminho para aumentar a nossa capacidade de resposta, nomeadamente de acolhimento permanente, de resposta de lar residencial, bem como aquilo que queremos agora que seja uma nova forma – no futuro já está em legislação – dos centros de actividades ocupacionais, que é uma valência muito importante desta instituição.
Como é que a APPACDM tem vivido com esta pandemia?
Foram anos difíceis: o ano de 2020 foi, realmente, complicado, ainda não se sabia muito sobre a doença. O que mais nos ‘castigou’ foi a inactividade… os nossos clientes foram obrigados a não participar num grande número de acções que têm a ver com o seu desenvolvimento contínuo e permanente. Nós perdemos com esta paragem. E, possivelmente, não perdemos um ano apenas. Para voltarem a encontrar o nível que felizmente já tinham, vamos ter que trabalhar muito mais do que um ano. Não é num ano que se vai conseguir fazer esse trabalho. Os técnicos, até melhor que eu, o farão e o dizem. Teve que acontecer, foi uma necessidade, mas ter estas pessoas paradas foi o que mais nos custou.
Neste ano de quase completa paragem das actividades, forçada pelas circunstâncias pandémicas, foram muitos os projectos adiados, nomeadamente na área da participação das pessoas, na área do desporto, do teatro, da dança, em que as pessoas muito se revêm e foi realmente impossível de concretizar. Imperava o medo. Os recursos humanos também não eram adequados para uma situação destas. Nesses dois anos, tivemos alguma ajuda de reforço, com o Estado, em boa hora a colocar pessoas que não estavam no mercado de trabalho e isso tem sido uma boa ajuda em época de pandemia.
Os colaboradores foram fundamentais para ultrapassar isto e terão sido em todas as organizações desta área. Sem isso, não conseguiríamos, certamente. Tivemos pessoas a trabalhar 16 horas seguidas muito tempo. Depois, tudo aquilo relativo à protecção individual, que teve custos como é obvio. Uma coisa que desarrumou qualquer plano de actividades que pudéssemos ter. Foi muito complicado parar com tudo, mas era a forma de proteger as pessoas.
Sente que a instituição saiu mais resiliente?
Há coisas que, apesar de tudo, se conquistaram, como o reforço da coesão interna e o hábito do uso de algumas tecnologias. E estes ganhos vão ficar: esta pandemia trouxe uma união entre as pessoas que, no fundo, lutavam alinhadas com o mesmo objectivo que era proteger o os utentes. Temos que agradecer aos nossos colaboradores, porque temos uma equipa excepcional.
Que projectos tem a instituição para o futuro?
A instituição tem dois projectos a aguardarem financiamento para poderem avançar, um que permita expandir o internamento actual nas instalações situadas no Vale de Santarém para acolher mais seis camas, com um custo estimado de 250.000 euros, e outro para aumentar em mais 12 camas a área existente no Cartaxo. Precisamos muito disto. Temos ainda que reforçar a nossa componente de formação profissional para as pessoas com alguma dificuldade intelectual e melhorar a sua integração no mercado de trabalho.
Como avalia a resposta que existe a nível distrital para estas pessoas?
Eu acho que o distrito de Santarém não está mal neste aspecto. Algumas instituições queixam-se de não ter a capacidade necessária, por isso não é preciso novas instituições, mas é preciso dar uma mão às que existem e muitos problemas ficaram amenizados. Nos podemos fazê-lo, com apoio. Tem havido uma evolução na criação de respostas para estas pessoas.
Está ligado à instituição há quase 30 anos, como é ser dirigente de uma associação desta natureza?
É muito desafiante, gratificante também e não deixa de ter a sua componente de dificuldade. Desde logo, temos 130 pessoas para pagar salário ao fim do mês… temos dezenas de famílias que acreditam em nós e de nós dependem. Para além destas paredes, há toda uma responsabilidade exterior que quem está na direcção de uma organização destas assume como presente todos os dias. Mas o amor a estas pessoas não nos deixa pegar na mala e ir embora. Não é tudo perfeito… nunca será, numa instituição com 130 pessoas, mas há muita gente que está aqui porque gosta de estar aqui. 90 por cento das pessoas que aqui chegam, se conseguirmos manter o posto de trabalho, não se vão embora. E não estamos a falar de um sector com os melhores salários do mundo. Quem está numa direcção tem que continuar a construir esta confiança com as famílias para o bem-estar dos seus e delas próprias. O importante para nós é a pessoa com deficiência. Como é que a pessoa é feliz e estamos cá para trabalhar com esse objectivo. A nossa dívida para com a comunidade que nos rodeia, onde se encontra o Correio do Ribatejo, a quem agradecemos muito a colaboração prestada, é imensa. No fundo, o que desejo é que a instituição, todos os que aqui trabalharam e os que continuam a trabalhar, possam criar um novo caminho de esperança, com saúde, e com projectos a realizar para o bem das pessoas que precisam dos serviços que prestamos, numa óptica que é a participação na sociedade, em que estes cidadãos se possam integrar, com todos os seus direitos de plena cidadania e que, ainda hoje, infelizmente, apesar do caminho muito grande que já foi feito, não lhes são completamente reconhecidos.
Filipe Mendes