Por uma ou qualquer outra razão sempre houve quem se dedicasse ao penoso exercício de pedir esmola, sobretudo como forma de suprir as suas necessidades mais elementares, mesmo ao nível da própria sobrevivência. A mendicidade é, em regra, fruto de uma carência elementar, pois, este acto carrega em si um grande estigma de humilhação, embora a sabedoria popular encontre um conforto moral para quem depende deste modo de vida – Mais vale pedir do que roubar!

Não temos dúvida de que, uma vez mais, o povo na sua provecta sapiência empresta o seu conforto dignificando uma prática, que muitos acham, exactamente ao contrário, que está cheia de indignidade.
Sobre este tema muito se pode dizer, desde a abordagem aos fundamentos do gesto de pedir como ao nível do que se pede, para que se pede e como se pede. Sim, porque o ofício de mendigo também carece de estratégias para ser bem sucedido. Não o pretendo fazer agora e aqui, embora ache que tal seria interessante, mas a mendicidade reveste-se de múltiplas técnicas, umas mais explícitas e básicas, outras bem mais elaboradas e até ardilosas. E neste segundo aspecto não incluo apenas a acção de falsos mendigos, que recorrem a processos fraudulentos e criminosos com vista à extorsão e ao roubo.
Noutra dimensão, podemos analisar a atitude de pedir por tudo e por nada, tantas vezes até sem necessidade. As crianças quando acompanham os pais nas compras não se cansam de pedir tudo o que vêem e de que gostam, nunca estando satisfeitas com algo que lhes possa ser concedido. Aliás, as campanhas televisivas na época de Natal estão construídas com o objectivo de desinquietar as crianças para que peçam este mundo e o outro. Porém, este peditório não cabe na análise que pretendo fazer, porque aqui o relacionamento entre quem pede e quem dá é em tudo diferente do resto.

Há igualmente outras pessoas que têm o vício de pedir, não é porque tenham efectiva necessidade de o fazer, mas é mais pela excessiva ambição de terem tudo o que querem, mesmo quando não o podem adquirir, mas, por uma fraqueza de carácter, não se envergonham de pedir. Destas pessoas, muitas vezes ouvi dizer os mais velhos que “davam bem para moços de cego!”. Eloquente…

Antigamente, mesmo nas famílias muito pobres e quando escasseava o trabalho do campo, as famílias passavam mal, porém, no seu entendimento, pedir era vergonha, pelo que iam ao rabisco para poderem comer, aproveitavam tudo o que a natureza oferecia e pedia-se fiado ao merceeiro, a quem se pagaria quando houvesse trabalho e se recebesse a jorna. Estender a mão à caridade é que não… Agora em certas aldeias ou vilas, havia quem tivesse melhor condição e partilhasse algumas coisas com essas famílias mais carenciadas. Naturalmente, era um gesto que nunca se esquecia.

Nos meios urbanos, onde não havia a possibilidade de rabiscar nada que se comesse, o caso mudava de figura, e aqui já se viam mendigos a bater de porta em porta, apesar de as autoridades não o permitirem. Nas feiras de antigamente era muito frequente vermos mendigos a pedir, os mais novos para algumas guloseimas a que não tinham acesso noutras circunstâncias, os mais velhos porque muitas vezes já não podiam trabalhar, pela força da idade ou por doença, e se não tinham filhos que os pudessem sustentar, passavam muito mal. Tempos de miséria.

Miguel Torga no seu Conto de Natal, uma preciosidade da nossa literatura, retrata-nos de forma sublime um mendigo – o Garrinchas – já avançado na idade, e que tinha de vaguear pelas aldeias das redondezas para prover o seu sustento. Em vésperas de Natal, o Garrinchas alargou a sua volta, que a coisa estava a render, e foi surpreendido pela noite, que chegara cedo, e por um forte nevão, que não se anunciara, o que o impedia de chegar a horas de consoar na aldeia natal. O texto de Torga é encantador na construção desta história tão singela, mas tão sublime, em que Garrinchas teve de pernoitar na ermida da serra, consoando com as imagens de Nossa Senhora e do Menino Jesus, fazendo ele próprio, ainda que indigno, de S. José.
Garrinchas reflectia profundamente na sua realidade e dava-nos conta do modo como lograva engordar as suas esmolas:

“Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam… Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladaínhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim… Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver. E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas.”

Serve-nos a lição do pobre Garrinchas, que parece ter outros que pensam de igual modo, pois, o facto de se estender a mão à caridade a meio de um Pai Nosso parece ter o dom de adoçar o coração dos mais avarentos, que, por temerem a Deus, lá abrirão os cordões à bolsa para benefício do pobre mendigo.
Outros há, como António Aleixo, que entendiam que cantar era também uma boa via para alcançar alguma esmola – “Se pedir peço cantando / Sou mais atendido assim; porque se pedir chorando / Ninguém tem pena de mim.”

(Continua)

Etnografia & Folclore – Ludgero Mendes

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