Decorre o processo eleitoral para a eleição de deputados para a Assembleia da República e a formação de um novo Governo. Apesar das gritantes proclamações, das múltiplas intenções, das mais diversas promessas explanadas nos diversos programas eleitorais, em democracia, não devemos esquecer, por um minuto que seja, os princípios fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, a qual não se encontra suspensa por período eleitoral.

“A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática. A validade das leis e dos demais atos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição”. Assim o estabelece o artigo 3.º da CRP.

E porque estamos em processo eleitoral é bom relembrar que “o povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, direto, secreto e periódico, do referendo e das demais formas previstas na Constituição. Os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da democracia política”, tal como se consagra no artigo 10.º da CRP.

Uma das tarefas fundamentais do Estado é “garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático” expressa na alínea b) do artigo 9.º da CRP.

Todos os partidos reclamam pelos males da Justiça, sem muito explicarem o que tal significa, revelando grande desconhecimento, quer dos males, quer da Justiça. No entanto todos consagram nos seus programas eleitorais, propostas, sugestões, projectos e grandes reformas para a Justiça, seja lá o que isso seja.

Regressando à CRP, devemos relembrar que “os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a Justiça em nome do povo, assim o proclama o artigo 202.º da CRP, sendo que os juízes são os titulares desses órgãos de soberania. “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” tal como estabelece o artigo 203.º da referida CRP.

De salientar que “a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes, bem como o exercício da acção disciplinar competem ao Conselho Superior da Magistratura, nos termos da lei, o qual tem consagração constitucional no artigo 218.º da CRP.

Por último recordar que “os juízes são inamovíveis, não podem desempenhar qualquer outra função pública ou privada e que em exercício não podem ser nomeados para comissões de serviço estranhas à actividade dos tribunais sem autorização do Conselho Superior da Magistratura, como determina o artigo 216.º da CRP.

Actualmente existem três perspetivas diferentes de diagnosticar a Justiça em Portugal – diagnóstico sociológico que assenta na perspectiva do cidadão sobre o funcionamento dos tribunais e demais instituições conexas; diagnóstico político feito pelos decisores políticos e por analistas e comentadores da comunicação social, que assenta em forte influência dado que é feito através do poder da comunicação social; diagnóstico operacional feito pelos operadores do sistema judicial – magistrados, advogados, funcionários e associações profissionais, bem como os conselhos superiores (cfr. Prof. Boaventura Sousa Santos, in a Justiça em Portugal: diagnósticos e terapias, manifesto, março 2009).

Em difícil síntese, diremos que os problemas na Justiça se resumem na morosidade dos processos e respectivas decisões que provoca a ineficácia da Justiça; os elevados custos processuais que constrói a ideia de uma Justiça para ricos e outra para pobres; o difícil acesso ao direito e aos tribunais por parte do cidadão através do apoio judiciário, que retira um direito fundamental dos cidadãos; a carência de meios técnicos, deficiência de quadros de magistrados e de funcionários que torna a Justiça inoperante; o mediatismo da Justiça e os mega processos, que leva aos julgamentos na praça pública.

Lidos os programas eleitorais dos diversos partidos políticos concorrentes às eleições legislativas de 2022, quase todos inscrevem propostas de medidas a levar a efeito, caso sejam eleitos os respectivos deputados, na área da Justiça. E todos anunciam medidas para estes males. Contudo não são estes os únicos males da Justiça. A afirmação dos tribunais como órgãos de soberania e a segura e efectiva independência dos seus titulares – os juízes. A verdadeira e segura autonomia do Ministério Público como garante da legalidade. O efectivo equilíbrio entre a tecnologia como meio auxiliar e a humanização da Justiça como garante dos Direitos Humanos. Justiça nos Tribunais e por juízes independentes, com meios técnicos e humanos suficientes, capazes de dar resposta em prazo razoável. Formação inicial, complementar e permanente a magistrados e funcionários, com vista à efectiva especialização nas diversas jurisdições.

Contudo, os respectivos programas eleitorais dos partidos políticos concorrentes acentuam a vertente política, não de reforma do sistema judiciário na perspectiva sociológica nem operacional, mas sim da maior politização e partidarização da Justiça. A questão da composição dos Conselhos Superiores por maioria de representantes do poder político, a criação de um único Conselho Superior para todas as magistraturas, a valorização excessiva da arbitragem e consequente desjudicialização de processos sobre matérias que devem permanecer sobre a alçada dos tribunais comuns ou especializados, são as matérias inscritas em todos os programas.

Quanto aos restantes e importantes males da Justiça, o que vemos são ideias vagas, sem fundamento para a sua eficácia e sem base sólida para a sua credibilidade.
As inúmeras deficiência e carências da Justiça há muito que foram diagnosticadas e, por isso, não são necessárias promessas. A Justiça é demasiado importante para o cidadão e para a democracia e os partidos políticos devem respeitar esse valor constitucional.
Nota final – no debate televisivo com a presença de todos os líderes partidários e com a duração de horas, nenhum abordou o tema da Justiça. Apenas no final um deles disse sobre a Justiça – “os bandidos devem ir todos para a prisão”.

Antunes Gaspar – Juiz Jubilado

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