O ódio, um ódio de morte, teve início quando os dois homens amaram a mesma mulher. Desenvolveu-se quando Gaspar foi acusado de desvio de fundos no local onde trabalhava com Alfredo. Atingiu as culminâncias em pleno julgamento, no termo do qual o denunciado havia de ser condenado, com testemunho activo daquele, arrastado para a prisão gritando inocência e ameaças de vingança contra o ex-colega.

A explosão final cifrar-se-ia por uma morte… Controversa, porém, quanto à motivação. Fera enjaulada, Gaspar recebeu exaltadamente o noticiado casamento do antigo companheiro e rival com a ex-noiva. Inconformado, lágrimas de raiva nos olhos escuros, invectivando a máquina implacável que o condenara.

Com o decorrer do tempo, a sua conduta havia de impressionar os próprios carcereiros.

Marcar mesmo uma dúvida. Teria havido um erro judiciário? Não seria incomum.

Tais erros são factos que nada têm de surpreendentes, ainda que indesejáveis.

A verdade é que exercer justiça não é tarefa fácil, e os juízes, por mais escrupulosos, podem ser traídos por conclusões inexactas, falsos testemunhos, etc.

Teria a atitude de desespero do preso, porventura, um pouco de comiseração, contribuído para um afrouxamento da vigilância.

Cerca de um ano após o encarceramento, Gaspar evadira-se. Quando se alertou Alfredo para a fuga e possibilidade de ser procurado pelo foragido, ele limitou-se a um comentário fatalista: – Terá que acontecer… os ódios são longos… Entrementes, num entardecer tardio, uma sombra projectou-se nas traseiras da casa de Alfredo. Um homem avançou devagar, agachado. Dedos movimentaram-se na fechadura. Um salto repentino, ágil para um indivíduo do seu tamanho, e entrou. Silenciosamente, atravessou um corredor estreito, orientando-se. Surgiu frente ao adversário postado sob uma lâmpada do candeeiro de secretária, em cima do qual dois longos copos e uma garrafa de whisky pareciam aguardar um encontro pré-estabelecido.

Um sorriso diabólico de ironia e triunfo desenhava-se nos lábios repuxados de Gaspar. Pálido, o suor a escorrer-lhe pelo corpo esquelético, o dono da casa teve como que um suspiro de alívio.

– Esperava-te desde a fuga! Iniciou-se um diálogo, acusador por um lado, conformado por outro. O leve ruído de louça que vinha da cozinha extinguiu-se. A esposa de Alfredo espreitou curiosa, estremecendo ao reconhecer o ex-noivo. Temerosa, esgueirou-se para chamar a polícia, captando ainda algumas palavras do marido: – Tudo inútil, Gaspar, tudo inútil… mais uns dias… vida… morte…

A polícia veio encontrar o evadido comodamente instalado numa poltrona, aguardando tranquilamente pelas algemas.

Próximo à secretária, o corpo sem vida de Alfredo. – Matou-se. Evitou-me o trabalho… – esclareceu cinicamente.

De qualquer modo, impunham-se providências bem diferentes de uma captura. O piquete, posteriormente chamado, não tardou a operar. Tomaram-se fotografias de vários ângulos para determinar a colocação do corpo em relação aos objectos, colheram-se impressões digitais, examinando-se tudo minuciosamente.

Nada é insignificante para passar por alto. Um especialista apanhou acuradamente o copo de vinho caído na alcatifa, recolheu a garrafa e o outro copo, assinalando-os, e, sem alterar a posição do corpo, extraiu do bolso direito das calças da vítima um pequeno frasco amarelo contendo uma cápsula.

Enquanto o medido ordenava a remoção do cadáver, um agente anotava, coadjuvado por outros, as declarações de Gaspar. – O homem estava cheio de remorsos. Segundo me disse, o médico encontrou-lhe qualquer doença que não poupa… eu também não estava disposto a isso, diga-se.

Pediu-me perdão, convidou-me a beber. Face à minha recusa, levantou-se, de copo na mão, tirou de um frasco uma pequena cápsula que levou à boca com líquido, voltando a colocar o frasco no bolso. Abriu a boca para dizer algo, subitamente estremeceu e caiu morto. Cianeto – concluiu.

No dia seguinte, os relatórios periciais haviam de fornecer alguns elementos, se não esclarecedores, pelo menos bastantes para uma teoria. A garrafa mostrava apenas impressões dedais do morto, tal como no frasco estavam marcados os seu polegar, indicador e médio da mão direita. O frasco não tinha impressões digitais. O veneno utilizado fora, realmente, o cianeto, não se encontrando dele quaisquer vestígios quer no copo quer no líquido da garrafa. A cápsula era de um medicamento inofensivo. O outro copo estava limpo. A morte, se não fora instantânea, mesmo fulminante, decorrera segundos após a ingestão do veneno.

Algo intrigava os investigadores e o próprio médico legista o cadáver apresentava uma equimose na base do crânio, suficiente para provocar um desmaio! Fora produzida, sem dúvida, anteriormente à morte, impossível de determinar o momento, mas não resultara da queda do corpo após a ingestão do veneno.

Crime? Suicídio? Vingança? Reconciliação na hora da morte? Eis os títulos dos jornais que revolviam todo o drama.

SOLUÇÃO

Primacialmente:

1 – a) Se o Alfredo tinha o copo na mão direita, como o indicam as impressões digitais (“polegar, indicador e médio da mão direita”) não poderia, com a mão esquerda, extrair o frasco do bolso do lado direito e – ainda com a mesma mão! – destapá-lo, tirar a cápsula, ingeri-la e voltar a pôr o frasco no bolso.

Isto porque, admitindo que, para tirar o frasco com a mão direita, tivesse momentaneamente largado o copo, ao voltar a pegar-lhe deixaria neste novo grupo de impressões.

1 – b) “O frasco não tinha impressões digitais”

Ora, se Gaspar afirmou expressamente que “tirou de um frasco uma pequena cápsula (…) voltando a colocar o frasco no bolso…” a contradição é evidente, já que aquele, se tudo assim se tivesse passado, não poderia deixar de as apresentar.

Secundariamente:

1 – c) Se a vítima apertou o copo na mão, como declara Gaspar, manifestando que Alfredo o fizera com raiva, então existiriam mais impressões e não só os três dedos.

2 – a) Se não existisse veneno na garrafa ou no copo, casos em que este poderia ter sido dado disfarçadamente, temos que com incluir que lhe foi dado à força. Como? Gaspar era um homem grande, abateu o rival com um golpe na nuca (…o cadáver apresentava uma equimose na base do crânio (…) produzida anteriormente à morte (…) mas não resultante da queda do corpo”) – e, quando este desmaiou, deu-lhe a beber um copo de whisky, introduzindo-lhe o veneno na boca do morto, esquecendo-se, porém de fazer esta operação neste último.

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